‘Medida Provisória’ é brilhantemente provocante

Filme evoca reflexão sobre racismo estrutural no Brasil.

Depois dos atrasos gerados pela pandemia e pelos embargos da Ancine (Agência Nacional de Cinema), Medida Provisória conseguiu fazer sua estreia comercial nos cinemas brasileiros em 14 de abril deste ano. E desde o último dia 15 o primeiro longa-metragem dirigido por Lázaro Ramos está disponível no Globoplay.

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No Brasil, em algum lugar do futuro, o governo cria um programa de incentivo para que pessoas negras (agora denominadas melanina acentuada) possam ir para a África. Uma espécie de reparação histórica pelo passado escravocrata do país. Muitos até riem do absurdo do programa, como Antônio (Alfred Enoch), André (Seu Jorge) e Capitu (Taís Araújo). Mas a piada termina quando a Câmara vota a favor de uma medida provisória que torna compulsória a emigração de qualquer pessoa com o menor traço de ascendência negra para o continente africano.

Adaptado do livro e peça Namíbia, não!, de Aldri Anunciação (que também faz parte do elenco do filme), Medida Provisória é uma distopia como poucas. Sem usar cenários ultratecnológicos ou de terra arrasada como a maioria das tramas do gênero, o conceito contemporâneo ajuda o espectador a se situar na história. Afinal, se a intenção é provocar o debate sobre a sociedade baseada no racismo estrutural em que vivemos, cenários e efeitos mirabolantes serviriam apenas como enfeites em algo que não dá para enfeitar. Está mais do que na hora de admitir a feiura desse aspecto do nosso país.

O conceito de certo modo pode lembrar a série The Handmaid’s Tale (inspirada no livro de Margaret Atwood), mas sem o uso excessivo de violência explicita. O que é outro ponto bastante positivo. O contexto já é pesado por si só, e o uso das falas comuns do vitimismo branco (“não tem que ter cota, tem que ser por mérito”!) bastam pra causar embrulho. Então o uso de sangue exagerado na tela só tornaria o filme muito difícil e gerador de muito mais gatilhos para algumas pessoas. E quando ocorre uma cena de violência, ela provoca o choque necessário.

O elenco foi visivelmente escolhido a dedo, talentos extraordinários para dar vida a personagens tão ricos. Desde o trio protagonista, os antagonistas e até os secundários. Vemos nos protagonistas de profissões conceituadas (um advogado, uma médica e um jornalista) o drama de ter a cor da sua pele sempre colocados acima de qualquer outra coisa. Mas além disso, Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge apresentam um entrosamento natural e cativante. É fácil se apegar e se colocar no lugar deles. Seus diálogos conduzem a trama com energia e entrega total. Em determinada cena, um diálogo entre André e Antônio remete às diferenças de perspectiva entre Martin Luther King e Malcolm X.

Outros nomes de destaque são Adriana Esteves e Renata Sorrah, com personagens que fariam Carminha e Nazaré soarem razoáveis. Já o personagem de Pablo Sanábio poderia ter uma participação maior, devido as revelações que ocorrem perto do fim. E temos nomes que mesmo com pequenas aparições se fazem notar, como Jéssica Ellen, Mariana Xavier, Emicida, Hilton Cobra, Tia Má e Diva Guimarães.

A trama tem tantos elementos que poderia muito bem gerar uma série derivada, ainda mais com o fim que se abre como uma carta de esperança. Não seria má ideia ver mais dos afro bunkers, dos movimentos de resistência e até de possíveis infiltrados no governo para tentar reverter a medida. Mas tudo depende de querer investir nisso. Audiência provavelmente não faltaria, uma vez que Medida Provisória teve a segunda maior estreia entre filmes nacionais do ano. É, nem as tentativas de boicote por parte de membros do governo foram capazes de impedir o sucesso do filme.

Nota: 9,5

Confira o trailer:

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