‘Torto Arado’ é igualmente sensível e mordaz

Romance fala sobre aqueles esquecidos pela História.

Enquanto lia a obra de Itamar Vieira Júnior para o Desafio Literário do Popoca do mês de abril saiu a notícia de que o livro virará série pela HBO Max. Então a resenha de Torto Arado (Editora Todavia) se tornou duplamente oportuna, por ser uma ficção histórica e porquê ano que vem teremos uma adaptação para assistir.

Bibiana e Belonísia são duas irmãs tão próximas e com tão pouca diferença de idade que são quase gêmeas. Durante uma travessura, enquanto mexem nas coisas da avó, ocorre um acidente que deixa uma delas sem jamais poder falar outra vez. A outra passa então a ser sua voz. E essa é apenas uma das dificuldades que as irmãs enfrentam crescendo e vivendo num ambiente de escravidão contemporânea no interior da Bahia. A beleza de Torto Arado está em além de trazer uma história ímpar abordar um tema pertinente, por mais doloroso que seja. Sua trama aborda uma parte da história que por muito tempo ficou enterrada, que apenas há poucos anos têm vindo a tona e que tristemente muitos ainda vivem. A escravidão depois da abolição da escravatura, onde direitos continuam sendo negados às pessoas negras.

Narrado como um livro de memórias, o enredo se divide em três partes: As duas primeiras narradas pelas irmãs Bibiana e Belonísia e a terceira por um encantado. O que além de dar um toque fantástico/sobrenatural à trama reforça a fé nas crenças ancestrais dos personagens. Os poucos diálogos são inseridos no texto como citações, coisa que poucos escritores conseguem fazer sem tornar a leitura maçante. Mas Itamar possui uma escrita tão enérgica que, além de fazer as vozes de suas personagens parecerem extremamente reais, faz a leitura fluir mesmo naquelas partes que te fazem desmoronar por dentro.

O grau de abandono ao qual aquelas pessoas estão submetidas pela sociedade, autoridades e até pela História é tanto que o leitor só se dá conta de que a trama se passa em meados do século XX nas poucas menções a um carro, televisão ou moto. As diferenças no modo de vida dos personagens para seus antepassados que viveram no tempo em que escravidão era prevista em lei são quase nulas. E aqueles que resolvem se rebelar correm riscos. É como se realmente vivessem em um período fora do tempo.

O fato de Itamar Vieira Júnior ser doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA com estudo sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste brasileiro certamente contribuiu na construção da trama. Mas para além disso está o talento de entregar com maestria uma história e personagens que soam reais. É perturbador ver as injustiças sociais as quais aquelas pessoas estão submetidas, em que a liberdade prometida a seus antepassados é apenas uma palavra no papel. Ao mesmo passo em que nos regozijamos com suas pequenas alegrias.

Um detalhe que Itamar realizou com esplendor foi esperar até o fim da primeira parte para revelar qual das irmãs perdeu a fala. Poucos conseguiriam fazer isso sem dar uma pista sequer. Isso ajudou a simbolizar o quanto Bibiana e Belonísia eram próximas naqueles primeiros anos, até que se afastaram e então voltaram a se unir.

Tudo isso faz de Torto Arado uma leitura imprescindível. A vida não é feita de finais felizes, mas se conscientizar das injustiças que outros vivem faz com que possamos contribuir para a construção de um mundo mais digno.

Nota: 10

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