Minissérie ‘Toda Luz Que Não Podemos Ver’ foca na luta pelo que é bom

Mesmo com omissão histórica, produção tem grande valor

No último dia 2 estreou na Netflix a minissérie Toda Luz Que Não Podemos Ver (All the Light We Cannot See), uma ficção histórica ambientada durante a 2ª Guerra Mundial. Inspirada no livro homônimo de Anthony Doerr (publicado no Brasil pela Editora Intrínseca) vencedor do prêmio Pulitzer, a produção em quatro episódios mescla sabiamente o sombrio e a esperança. E dialoga com os dias de hoje.

Marie (Aria Mia Loberti) é uma garota escondida na casa do seu tio no litoral da França, em plena ocupação nazista. Ela faz transmissões de rádio todas as noites, mesmo sabendo dos riscos, esperando que ele ou seu pai estejam ouvindo e possam voltar para casa. Quem sempre a ouve é Werner (Louis Hofmann), um jovem soldado alemão que adora suas mensagens e que fará de tudo para protegê-la.

É preciso dizer que Toda Luz Que Não Podemos Ver traz uma história carregada de uma sensibilidade rara. Para além do poder do rádio que Doerr quis mostrar em seu livro, levando o leitor – e agora espectador – para uma “época em que ainda era um milagre ouvir a voz de um estranho em sua casa”, está o poder das palavras. Sim, ele também quis mostrar como essa tecnologia foi usada tanto para o bem quanto para o mal durante a 2ª Guerra. Mas o rádio nada mais era do que um meio para transmitir as mensagens de bem e de mal, papel hoje majoritariamente ocupado pela internet.

Impossível não notar o papel do rádio na formação de Marie e Werner como pessoas. Ela, uma menina cega de Paris criada com amor pelo pai Daniel (Mark Ruffalo). Ele, um menino órfão no interior da Alemanha que cresceu com a irmã Jutta (Luna Wedler) em um orfanato. Mesmo com origens tão distintas, Marie e Werner tiveram seus horizontes ampliados por essa tecnologia maravilhosa. Seja ouvindo sobre as belezas do mundo ou exercitando habilidades com a aparato. Em comum, um apreço pelos ensinamentos de um certo professor que todas as noites transmitia aos jovens fatos científicos e mensagens de esperança.

O impacto das palavras desse professor nos jovens protagonistas foi tal que os impediu de quebrar por dentro, mesmo que o mundo já não fizesse mais sentido. Isso é algo brilhante de se ver em um enredo. Pois ultimamente ouvimos tanto sobre o quanto palavras podem ser destrutivas que acabamos esquecendo que elas também constroem. E pior, raramente paramos para avaliar o peso de nossas palavras nas pessoas que nos rodeiam.

Para além do conceito, a minissérie traz um show em reconstrução histórica e atuações. Tanto durante a 2ª Guerra quanto no breve período que a sucedeu, mostrando as infâncias de Marie e Werner, e até em breves cenas da 1ª Guerra. Estas mostrando o tempo em que Etienne (Hugh Laurie), tio de Marie, era soldado. O que teve o efeito de mostrar os efeitos de uma guerra em quem vai para o campo de batalha.

O fato de Toda Luz Que Não Podemos Ver ter uma protagonista cega fez a Netflix “retomar” uma antiga ferramenta: Audiodescrição. A plataforma já tinha começado a oferecer opções de audiodescrição em 2015, com a estreia de Marvel’s DareDevil (hoje presente no catálogo do Disney+). A promessa na época foi de que todas as produções originais contariam com a ferramenta, fato bastante comemorado pela comunidade PCD. Porém, com o tempo, apesar de não sumir completamente, a ferramenta foi perdendo opções de idioma. Sendo muitas vezes disponibilizada apenas no idioma original, tendo como opção extra o português somente nas animações. Agora as produções voltaram a contar com audiodescrição em vários idiomas, e esperamos que continue assim.

Voltando aos aspectos da produção em si, por ter uma reconstituição primorosa do período abordado ela comete um grande erro. Ela simplesmente ignora o Aktion T4, uma dentre tantas práticas de eugenia adotadas pelo nazismo que consistia no assassinato de pessoas com deficiência. A trama de Toda Luz Que Não Podemos Ver se desenrola como se os únicos riscos para a vida de Marie fossem as transmissões clandestinas e o fato de esconder uma joia muito desejada por um soldado. Apesar de mostrar alguns encontros com soldados em que é tratada de forma rude e capacitista e em certo momento dizer para o pai “sei que eles odeiam o que é diferente, sei que eu sou diferente”, fica nisso mesmo. O fato de que os nazistas poderiam levá-la e matá-la porque Marie era cega é ignorado. Em tempos de desinformação em que até a existência do Holocausto vem sendo negada, tal omissão é imperdoável. Poderiam muito bem seguir os passos do curta Perdoai-nos as Nossas Ofensas (Forgive Us Our Trespasses), também disponível na Netflix, e da HQ Pássaro Branco (White Bird) de R. J. Palacio.

Enfim, mesmo com essa omissão é uma minissérie imperdível. Com roteiro de Steven Knight e direção de Shawn Levy, Toda Luz Que Não Podemos Ver é um lembrete de que o bem existe. Mesmo quando parece que não.

Nota: 8,5

Confira o trailer:

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