Duna – o livro

Frank Herbert se tornou um grande marco na literatura de ficção científica com o livro, mas...

Para o Desafio Literário Popoca de maio, com o tema revoluções e lutas contra sistemas opressores, resolvi encarar um tijolão clássico: Duna. Aclamado pelos amantes de ficção científica, o livro, ou melhor, a saga, já virou filme e série de TV. Além de ter sido uma das inspirações mais óbvias que já vi para Star Wars.

++ Leia tudo sobre Duna

spoiler free

Frank Herbert se tornou um grande marco na literatura de ficção científica com o livro, que fez tanto sucesso que acabou virando uma saga de seis volumes generosos. Isso porque em pleno anos 60 ele criou um mundo futurista, com direito a viagens pelo espaço sideral com ajuda de drogas alucinógenas, toda uma nova ecologia manipulada por seres humanos baseadas num deserto e vários tipos diferentes de tecnologias envolvidos. Aliado a isso, Herbert fez uso de diversas culturas espalhadas pelo mundo, colocou tudo num caldeirão, misturou bem, incluiu diversas palavras de origem oriental e disso tirou várias culturas futuristas com forte base religiosa. O tamanho do trabalho do autor faz a comparação com Tolkien bastante óbvia, especialmente porque os dois fazem uso de diversos mitos criados para seus próprios mundos para fazer o enredo andar e justificar um monte de coisas. Mas diferentemente de Tolkien, que criou do zero diversos idiomas e, apesar do cunho cristão, conseguiu criar uma mitologia bastante original, Herbert foi bem menos criativo em Duna, fazendo uma montanha de apropriações culturais que são bastante complicadas.

Muito da biologia e ecologia que Herbert usou, e que eram novidade na época da publicação do livro, são hoje consideradas bastante ultrapassadas e cheias de problemas e efeitos adversos considerados imprevisíveis. Mas não sou formada nisso, confesso que é pura orelhada por ter lido diversos casos que deram muito errado. E apesar do mundo principal onde se passa a história, o planeta deserto de Arrakis, ser muito interessante e diferente, o autor, como Tolkien, passa muito tempo descrevendo um monte de coisas, o que torna a leitura por vezes bastante lenta e pesada.

O enredo principal é supostamente uma jornada de herói. Temos Paul Atreides, que é um herói do tipo O Escolhido previsto numa profecia (Star Wars, duas vezes), que passa a ser reconhecido como tal em Tatooine, quer dizer, Arrakis. Eu disse supostamente? Então, a jornada do herói ou monomito tem de forma resumida as seguintes fases: o mundo comum (a vida do herói antes da jornada); o chamado para a aventura; uma ajuda sobrenatural no início da aventura que leva o herói a ultrapassar um primeiro portal de mudança; o herói encontra um mentor ou um “ajudante” que o guia numa fase de transformações e tentações; o desafio da morte ou abismo (pode ser literal ou não, mas traz revelações e transformam o herói); e o retorno do submundo transformado para a sua apoteose e grande conquista, muitas vezes é uma redenção. Basicamente: Luke Skywalker, Anakin Skywalker, Frodo, Bilbo… todos passam por essas fases nas suas jornadas.

Apesar de dizer lá em cima que não tem spoiler, o enredo é muito conhecido, e muito do que vou dizer está na sinopse do livro ou no primeiro capítulo. Paul é desde o início do livro marcado como o escolhido. Ele é perfeito demais, tem mais técnica, sabedoria e poderes do que deveria. O mundo comum já está previsto para acabar desde sempre, e Paul nunca fez parte dele por sua diferença com relação aos reles mortais. Você pode dizer que o chamado à aventura é a morte do pai dele? É, até dá, mas todos já sabem que isso vai acontecer e de uma forma ou de outra estão preparados para isso, inclusive Paul. Antes da morte do pai, ele já era chamado de profeta pelo povo de Arrakis. Depois da morte, ele tem ajudantes, que não são responsáveis por nenhuma das transformações ou tentações que Paul passa, ele, sendo profeta, o escolhido e superior, faz tudo basicamente sozinho, e também estava previsto na profecia isso. Não há desafio. Paul, podendo ver o futuro, passa por momentos em que o futuro tem possibilidades demais e ele não consegue enxergar bem, mas é só isso. Ah, ele toma narcóticos que o transformam de uma vez por todas e no processo fica em coma, mas para ele dura apenas uns minutos e ele não sofre. Apoteose? Não, temos a profecia se concretizando, algo que em momento algum do livro é posto em dúvida.

Então, Duna é uma jornada do herói incompleta, com pouca tensão e sem reviravoltas ao longo da narrativa. Paul segue quase que a anti-saga, porque sabe que é o escolhido e que seu futuro é a Jihad (sério, o autor rouba essa palavra, num orientalismo terrível e um grande desserviço aos muçulmanos). A princípio ele quer tentar evitar a Jihad, porque sabe que vai ser catastrófico. Boa parte de tudo o que ele faz no início é para evitar essa guerra, o que é muito heroico. Ele busca alternativas menos violentas. Daí cansa, e resolve que vai mesmo fazer a Jihad e pronto. Sem preocupações com quem vai morrer no caminho.

Diferentemente da profecia clássica, onde o herói acaba por fazer com que ela aconteça ao tentar evitá-la, Paul sabe da profecia e a partir de um certo ponto decide que tudo bem ela acontecer, tava previsto mesmo, quem vai dizer que ele estava errado? E ele assume esse papel revolucionário por um lado, porque ele realmente luta contra o sistema opressor de Arrakis, mas em troca dele mesmo se tornar o novo grande opressor, o novo imperador profeta do universo.

Frank Herbert usa vários elementos de narrativas clássicas e faz algumas alterações, o que poderiam torna-la bastante original, mas cujo resultado não funciona bem dentro no livro. O enredo se autodescreve como sendo a história de um herói (o que não é), e como um povo pode ser destruído ou causar grandes horrores ao seguir um herói. Paul Atreides não é um herói, e, por isso, muitos interpretam Duna como sendo uma narrativa para alertar sobre os problemas de uma civilização se apoiar num líder carismático. O que definitivamente é uma mensagem muito válida, especialmente hoje em dia. O problema é que Paul não é apenas um herói, ele é um profeta, e sua história é contada com uma dose cavalar de misturas de religiões reais que possuem profetas ou heróis e escolhidos, especialmente Cristianismo, Budismo e Islamismo. Ao invés de uma mensagem de cautela, ela pode também ser entendida como um ataque a diversos personagens religiosos importantes: Jesus, Buda, Maomé e outros. Em especial, de todas essas grandes figuras religiosas a que mais se aproxima de Paul e sua história em Duna é Maomé, somando-se o fato inegável que o povo de Arrakis é baseado em árabes e beduínos, o livro pode ser interpretado como um ataque ao Islã.

Nos anos 60 ninguém ligava para isso. Hoje em dia…

Tudo bem que eu sou chata para essa questão em específico, pois estudo o idioma árabe, história árabe e Islamismo há muitos anos. Mas toda vez que aparecia uma palavra sendo usada e as referências religiosas eu ficava me contorcendo e com vontade de jogar o kindle na parede. Infelizmente, tenho certeza que a maioria das pessoas não percebe nem uma fração do que me incomodou.

E tem a questão do machismo. A sociedade de Duna é bastante patriarcal. Apenas homens possuem títulos, mulheres são responsáveis por gerar filhos. Não há mulheres em nenhum tipo de luta formal. Quando elas aparecem lutando ou é a exceção que confirma a regra, ou é uma forma de mostrar o quão bom de luta é determinado povo, onde mulheres, crianças e velhos são todos colocados juntos. Existe uma única casta com algum poder dominada por mulheres, as Bene Gesserit, que são chamadas de bruxas e malvadas durante todo o enredo. Elas possuem treinamento especial em manipulação, não só de pessoas, mas genética também. Ao longo dos séculos elas fazem triagem genética de pessoas em posição de poder para um dia surgir o tal profeta. E elas fazem isso através de casamentos arranjados entre elas mesmas e o imperador, duques, barões etc. Se alguém escrevesse algo assim hoje seria detonado, só digo isso.

Em resumo, Duna é uma história e uma obra que marcou uma época, mas resistiu muito mal ao tempo. Tirando as alegorias mais chamativas que um dia foram originais e não problemáticas, o que sobra é um enredo sem reviravoltas, com muito machismo, apropriação cultural, deserto e areia.

Arquivos

Leia Mais
SHAZAM - crítica
Crítica: SHAZAM!