Caminhos do horror no cinema: do ‘slasher’ à renovação

O mês de outubro é o mês da chegada do Dia das Bruxas

O mês de outubro, com a chegada do Dia das Bruxas, sempre coloca para o cinema de horror e seus slasher em um destaque maior do que em outras épocas do ano. Em sua história, observa-se que, no final do século XX, o gênero se viu em crise, diante da sequência de repetições em torno de franquias desgastadas. O gênero, em seu período recente, teve que buscar em alguns clássicos e mesmo em cinematografias dissidentes referências para ainda se mostrar criativo e vigoroso.

O horror e o slasher no cinema em crise

Na década de 1990, depois da criação de numerosas franquias e das sucessivas e repetitivas sequências, há uma evidente crise do gênero, transformando-se em uma imitação de si mesmo, em especial entre os slashers. Os diretores clássicos do gênero, como Tobe Hooper, John Carpenter e Sean Cunningham, não se envolviam diretamente com muitas das novas produções que davam continuidade às franquias originadas por seus filmes. Observa-se a falta de criatividade em muitos filmes, requentando enredos desgastados e até mesmo ressuscitando personagens, em histórias repetitivas e desprovidas de lógica.

Essa crise parece ter colocado o cinema de horror a se repensar. Um dos sintomas dessa autorreflexão se materializa no uso da metalinguagem como forma de narrativa. Esses filmes levam ao caricato a narrativa clássica dos slashers, problematizando e até mesmo ridicularizando os clichês dessas produções. Um importante marco nesse processo é o filme O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger (1994), em que Wes Craven retorna à direção de um filme da franquia para justamente contar uma narrativa metalinguística. Outro exercício de reflexão, ainda que abaixo do talento de Craven, foi tentado pouco tempo antes em There’s Nothing Out There (1991) por Rolfe Kanefsky.

Em filmes como Pânico (1996), dirigido por Wes Craven, e O segredo da cabana (2012), de Drew Goddard, enquanto os jovens são massacrados, a autorreflexão dos próprios personagens permite que se faça um filme dentro de um filme, ironizando e refletindo acerca dos acontecimentos. Esses filmes mostram os mecanismos repetitivos das narrativas slashers, mostrando o quanto se tornaram óbvias, sem criatividade e até mesmo ridículas.

O gênero parece ter ainda tentado uma sobrevida nos filmes de possessão, com espíritos que perturbam pessoas e casas, sendo produto disso filmes como os da franquia Invocação do mal. No contexto disso se criou uma assustadora personagem, a boneca Annabelle. Contudo, essa franquia e seus desdobramentos também se perderam em sequências e repetições.

Slasher: Outras cinematografias

Observa-se, na década de 1970, uma cinematografia que escapa total ou parcialmente da lógica conservadora dominante no slasher e em outros filmes de horror. Muitos desses filmes mostram uma sociedade em crise, onde existe a ameaça de destruição, e as autoridades e os valores convencionais são incapazes de derrotar e eliminar os males com os quais as pessoas se defrontam. Em muitos casos, esses filmes não legitimam as instituições e os valores dominantes na sociedade, mas mostram que a violência e a desintegração social são forças presentes e poderosas.

Nessa cinematografia se destacaram alguns nomes de diretores. George Romero se tornou conhecido por ter criado o monstro moderno por excelência, concretizado em filmes como Noite dos mortos-vivos (1968). O zumbi é um indivíduo dominado por um sistema econômico que não se detém, mas que conduz à deterioração da existência humana e do planeta.

Romero retomou o tema dos zumbis em outros filmes, como em Despertar dos mortos (1978) e Terra dos mortos (2005). Contudo, também realizou obras que escapam ao modelo narrativo hegemônico. São exemplos disso os três filmes nos quais o medo de potenciais ameaças que não se concretizam leva as pessoas a um pânico extremo. Os filmes em questão são A Época das Bruxas (1972), O Exército do Extermínio (1973) e Martin (1978).

Outro nome que se destacou foi o Dario Argento. Colaborador próximo de Romero, com quem fez a adaptação de dois contos de Edgar Allan Poe em Dois Olhos Satânicos (1990), Argento paulatinamente deixou o giallo (gênero policial característico da Itália) e se dedicou ao horror, tendo seu auge com o filme Suspiria, primeira parte de uma trilogia, que inclui A mansão do Inferno (1980) e O retorno da maldição (2007). Neste filme, como em outras obras posteriores, Argento coloca em cena protagonistas mulheres bastante diferentes das pudicas final girls dos slashers estadunidenses. Em Phenomena (1985), sua própria versão de uma slasher, mostra-se como a defesa incondicional da família pode levar à sua própria degeneração.

No final da década de 1970, outro nome que começa a ganhar projeção é o do canadense David Cronenberg. Os filmes Calafrios (1975) e Rabid (1977) mostraram a proliferação de surtos, levando pessoas ao adoecimento, ao mesmo tempo que questionavam o uso privado da ciência e suas experiências. O tema da ciência apareceu em outras obras do diretor, como em Scanners (1981) e em Videodrome (1983) e em seu filme mais famoso, A mosca (1986), cujos efeitos especiais ganharam o ganhador do Oscar. Um de seus filmes mais recentes Crimes do futuro (2022) voltou ao tema das experimentações biotecnológicas.

No final da década de 1980, o escritor Clive Barker, com o orçamento bastante modesto, dirigiu a adaptação de algumas de suas obras e, posteriormente, trabalhou como produtor em outros filmes. Sua obra cinematográfica mais famosa é Hellraiser (1987), que colocou em cena de forma aberta o sadomasoquismo, soa atualmente conservadora em uma narrativa onde essa forma de prazer é apresentada como uma tortura que pode levar à morte. Em Raça das trevas (1990), Barker faz uma contundente crítica ao fanatismo religioso que leva a sociedade a atacar e destruir qualquer coisa que, por ser diferente, lhe causa medo.

Buscando caminhos

Nos anos seguintes, observa-se um conjunto de produções que não necessariamente trazem novidades, quando comparadas aos clássicos, mas que retomam temas e outros aspectos do gênero de forma criativa. Em diferentes produções tem sido possível identificar não apenas a tentativa de renovar as narrativas ou os personagens, como também de resgatar elementos do próprio cinema clássico de horror. Pode-se ver roteiro, música, cenografia e fotografia a serviço da construção de uma narrativa criativa e densa que coloca como centro um suspense que efetivamente provoca medo.

Nos anos recentes, dois filmes apontaram igualmente para a possibilidade, ainda que incipiente, de caminhar para a renovação do cinema de horror. Exibido em Cannes, o filme Corrente do mal (2014) parece ter causado um impacto positivo no público e na crítica. No filme, a perseguição sofrida pela protagonista por ter feito sexo poderia levar a história a um lugar comum, por meio da punição moral, como nos slashers clássicos. No entanto, subvertendo a lógica mais comum no gênero, a protagonista se torna a final girl, ainda que tenha feito sexo e possa ser moralmente questionada por tentar passar a maldição adiante e provocar a morte de um amigo, derrotando a entidade que a persegue quando esta assume a imagem do seu ausente pai. O centro da narrativa é o crescente suspense, potencializado pela forma não-fixa da entidade, pelos imprevistos, pela câmera aberta, enfim, pelo competente uso dos mais variados recursos da linguagem cinematográfica, possíveis e disponíveis.

Outra obra recente particularmente interessante é A bruxa (2015). Passado no século XVII, o filme mostra uma família extremamente religiosa e supersticiosa, que começa a enfrentar fenômenos aparentemente paranormais. No filme, a ameaça é apenas sugerida e, embora sejam mostradas cenas que possam indicar uma ameaça real, não há nenhuma prova de bruxaria ou de ação de uma força sobrenatural. Por outro lado, a narrativa é feita a partir do ponto de vista dos personagens, incorporando suas percepções, medos e até mesmo visões na construção do suspense. O filme tem uma narrativa bastante lenta, centrado na construção do medo, que leva toda a família ao completo pânico e à violência, mostrando como o delírio religioso e a crença cega podem levar à destruição daquilo que supostamente se defende, como a família.

Ganhou destaque nos últimos anos também os filmes associados a Jordan Peele. Seja como produtor, seja como diretor, filmes como Nós (2019), Corra (2017) e A lenda de Candyman (2021) e a série Lovecraft Country (2020) têm em comum elementos fundamentais. Primeiro, o fato de colocar em cena protagonistas negros, subvertendo uma lógica comum ao longo do gênero, onde os negros ou eram quase esquecidos ou, quando apareciam, estavam associados ao irracionalismo ou mesmo a um comportamento quase selvagem. Segundo, por colocar claramente o problema do racismo e mesmo a hipocrisia de políticas de reparação, especialmente aquelas que vem tentando nos últimos anos Hollywood.

Um gênero popular

Por este panorama pode-se verificar a vitalidade do gênero, hoje popularizado e difundido, construindo características e particularidades artísticas e estéticas. O cinema de horror, por meio de suas próprias criações ou de adaptação de obras literárias, ajudou a fortalecer o gênero. O recente processo de renovação mostra, primeiro, que a insistente reprodução de filmes que pouco se diferenciavam e nada agregaram esteticamente havia consolidado uma certa marginalização do gênero por parte da crítica ou mesmo do público.

Em segundo lugar, observa-se que, ao retornar elementos criativos do gênero utilizados em outros momentos, uma parcela das produções recentes pode construir uma nova cultura em relação às obras de horror. Essas obras podem consolidar a serem respeitadas esteticamente e vistas pela crítica não apenas como mera diversão, mas inclusive como expressões culturais de importante valor artístico.

 

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