Incêndio da cinemateca é a vitória da omissão

Eleitores, celebridades e instituições tiveram a oportunidade de salvar a instituição. Falharam

Em maio, o Ministério Público Federal aceitou um acordo com o Ministério do Turismo e Secretaria de Cultura para a publicação de do edital de uma empresa responsável por gerir a Cinemateca, principal instituição que conserva a história do cinema brasileiro.  Era uma tentativa de resolver uma longa disputa que deixava a instituição sem os cuidados necessários desde 2019. Apesar do prazo ter vencido em junho, o MP aceitou prorroga-lo por mais 60 dias no dia 20/07. Nove dias depois, a sede pegou fogo.

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A Cinemateca foi alvo de longa disputa pela imprensa. O governo Municipal se candidatou a garantir a sustentabilidade da instituição, livrando o governo Federal de seu custo. O secretário Mário Frias recusou e buscou todas as possibilidades de tirar não apenas a gestão estadual, mas também demitir todo o quadro de funcionários. Na audiência de conciliação em que se comprometeu a publicar o edital, garantiu que a Cinemateca estava em plenas condições com climatização, segurança e brigada de incêndio 24 horas por dia. Quem diria, que pessoas do governo Bolsonaro poderiam mentir descaradamente?

No dia seguinte ao incêndio, nesta sexta-feira (30) a Secretaria Cultural publicou um edital para que uma empresa possa gerir o que sobrou da instituição pelos próximos cinco anos. O documento oficial afirma que “deverá executar atividades de guarda, preservação, documentação e difusão do acervo audiovisual da produção nacional por meio da gestão, operação e manutenção da Cinemateca Brasileira.”

Infelizmente, as circunstâncias foram menos pacientes com o governo Bolsonaro e a gestão Mário Frias do que o poder judiciário brasileiro.

Cinemateca pedia socorro

Em maio,  o jornalista Ricardo Feltrin já avisava que filmes da Cinemateca poderiam estar irremediavelmente perdidos devido a falta de cuidados. Não houve mais celeridade ou gritos. O país anestesiado pelo bolsonarismo, entrou de cabeça na CPI de Covid-19 e tudo parou, inclusive um governo que se movimenta apenas para gerar mais crises que enfraqueçam a República e fortaleçam o governo.

Ninguém ligava. A ex-secretária de cultura Regina Duarte pediu demissão do cargo e avisara que seria a diretora da instituição, mas foi surpreendida por leis de um país cada vez mais distante quando as instituições protegiam o Estado. No mesmo dia que a Cinemateca pegava fogo, a “namoradinha do Brasil” se exibia em um luxuoso spa no Rio Grande do Sul. O contraste de temperaturas ecoava o paradoxo da arte brasileira perdendo um de seus maiores tesouros.

Como se as metáforas óbvias não se esgotassem, Frias estava fora do Brasil em uma conferência… Em Roma, cidade que já foi assolada por incêndio e sobreviveu. Também notória por suas ruínas. Sem recolher nenhum caco, o Secretário de Cultura culpou o Partido dos Trabalhadores pelas chamas e não assumiu nenhuma responsabilidade. O PT está fora do governo federal há cinco anos e a Cinemateca passou para a Fundação Roquette Pinto em 2018, ainda no governo de Michel Temer. E já era um cenário diferente.

Há quinze anos, o então presidente Luis Inácio Lula da Silva entregava uma Cinemateca revitalizada. Regina não tinha mais medo, o Brasil assistia O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias (longa-metragem sobre uma criança, filha de pais sequestrados pela ditadura militar) e o país vivia os resultados do período nomeado de retomada.

Todos estes legados não foram o bastante para ecoar os gritos que a Cinemateca dava sobre o que estaria por vir. Há menos de um ano o cantor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil criticava a omissão da classe artística. Se há os que fortalecem o governo Bolsonaro com o silêncio, há também os que manifestam apoio com frequência como Zezé di Camargo e Sérgio Reis. Ambos são culpados pelas chamas que queimaram os filmes do cinema brasileiro.

Em 2018, quando muito se falava do perigo que representava o governo Bolsonaro poucos foram os que se pronunciaram. Para cada Daniela Mercury e Patrícia Pillar, houve artistas como Ivete Sangalo que preferiram cruzar os braços. Um privilégio que suas carreiras lhes deram: poder cruzar os braços no meio do incêndio. A Floresta Amazônica, índios brasileiros, mais de 500 mil brasileiros mortos por covid-19 e o acervo da Cinemateca não tinham o mesmo privilégio. A estes, as 42 milhões de pessoas que não votaram em ninguém foi uma omissão mais cara. Parabéns a todos os envolvidos.

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