Novembro Negro e Hibisco Roxo

Em Novembro, o desafio literário é trazer à tona publicações, livros, escritores e escritoras que abordem a temática negra. E só pra contextualizar, é importante compreender porque novembro tem sido considerado o mês da Consciência Negra.

Na década de 70, em um grupo do movimento negro gaúcho, porque sim, o Rio Grande do Sul tem muitas pessoas negras, o poeta e professor Oliveira Silveira propôs que a data de 20 de novembro, atribuída a morte do icônico Zumbi dos Palmares, se tornasse o Dia da Consciência Negra, ou melhor, um dia para reflexão e difusão das contribuições da população negra para formação do Brasil. Em 2003, a data a passou a ser considerada pelo calendário escolar, especialmente porque aquele foi o ano em que foi aprovada a lei 10639/03 que trata da inserção dos conteúdos da história e cultura afrobrasileira no currículo escolar de forma transversal em todas as disciplinas. Em 2011, a data passou a fazer parte do calendário oficial, ainda que sem obrigatoriedade de feriado. Esta comemoração é resultado de luta de diversas vertentes dos movimentos negros por décadas e, desde a década de 70, em novembro, há diversas ações e eventos que buscam dar conta desse desconhecimento que temos a respeito da contribuição da população negra para a ciência, cultura, literatura e para a formação geral de nossa sociedade.

Dito isto, acrescento que a comemoração desta data e destas lutas é um movimento de disputa em favor das diversidades e também que é um prazer contribuir um pouco para este movimento através das impressões sobre o que tenho lido nesta temática.

Foi difícil escolher por onde começar, mas decidi ser clássica e trazer o livro Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozie Adiche e que foi lançado justamente em 2003, ano em que o dia da Consciência Negra passou a ser difundido nas escolas brasileiras. Foi o primeiro livro dela que li, mas não naquela época, pois, apesar de eu mesma ser uma mulher negra e acadêmica, conheci Chimamanda bem tarde, conhecia a iniciativa dela chamada Farafina Trust que fomenta a escrita e o gosto por literatura em crianças e jovens na Nigéria e a admirava por isso, mas só bem depois fui ler Hibisco. Eu tenho certo ranço de coisas e pessoas muito badaladas e mesmo sem qualquer explicação justificável, simplesmente resisto a ler ou ver o que todo mundo está comentando.

Chimamanda é nigeriana e o livro traz as peculiaridades de uma Nigéria que não está nos catálogos de viagens, nem nas notícias de jornais que, aliás, só incluem países do continente africano para notificar tragédias, sejam naturais ou produzidas por nós, humanos. Hibisco Roxo traz a Nigéria pelos olhos de Kambili, a protagonista e narradora do romance, uma Nigéria encarnada, cheia de sons, cores e sensações das mais diversas e cruas. Lembro de ter sorrido e chorado muitas vezes ao ler pela primeira vez, lembro de ter reconhecido todas as sensações daquele universo tão distante e tão próximo da nossa realidade brasileira.

Hibisco Roxo traz uma narrativa do olhar feminino sobre a vida, a dor de amar um pai ausente e autoritário, de questionar o silêncio do mãe diante de um pai severo e dominador, a empatia com o sofrimento dessa mesma mãe, a série de sentimentos sobre o pai que é forjado por um sistema que lhe aplaude e encoraja; uma narrativa sobre os silêncios e as várias maneiras de gritar, mesmo que seja fugindo. E, para além dessa narrativa subjetiva, o livro fala sobre como o sistema econômico, a religião e a divisão de gênero se impõem sobre nossas práticas e atravessam nossos modos de ser provocando séries de destruições em nosso cotidiano.

É tão forte e sutil a maneira como a autora coloca essas tensões que, para mim, foi impossível não me identificar e nada tem a ver com o fato da autora ser negra ou falar sobre negritude, porque não é sobre isso que se trata o livro, mas sim como a violência pode ser naturalizada e socialmente aceita, ou ainda, como a violência faz parte de um marco civilizatório.

Kambili vai trazendo todas essas nuances convivendo com a tradição cristã e vendo seu próprio pai, Eugene, rejeitar o avô que vivia de acordo com as tradições ancestrais de sua família. Eugene é o típico homem de bem, provedor, dono de fábricas e de um jornal de oposição ao governo, católico fervoroso, pilar de sua comunidade, porém um homem abusivo que usava a moral, a religião e os bons costumes para justificar seus atos. Mas apenas quando a protagonista entra em contato com outros universos, seja a partir da ancestralidade com o avô, da universidade com a tia ou a liberdade com os primos que ela consegue perceber o quão violenta era aquela realidade.

Me fez pensar sobre aquilo que a própria Chimamanda fala sobre “o perigo de uma história única” e o quanto nos encerramos em nossas verdades sem nos permitirmos esticar o pescoço fora da nossa caixinha. Não é um livro simples, justamente por conta das reflexões que ele provoca. Mas acho que é isso que o faz tão incrível, tenho gosto por esse tipo de leitura que nos tira do lugar e provoca um desconforto produtivo e criativo. Hibisco Roxo aponta que conviver com a diferença nos impulsiona a sermos leves, fluidos, críticos e, logo, com mais possibilidades de amar, porque não precisamos aceitar, apenas sermos quem somos.
Foi uma viagem interessante, um livro nota 10.

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