Os super-heróis em crise

Filmes de super-heróis inspirados em histórias em quadrinhos parecem ter perdido força

Depois de anos seguidos com grandes bilheterias e elogios por parte da crítica, os filmes de super-heróis inspirados em histórias em quadrinhos parecem ter perdido força. Os poucos filmes lançados no período recente foram recebidos com menos entusiasmo ou mesmo foram duramente criticados. São exemplos disso Aquaman e o Reino Perdido, As Marvels, do final de 2023, e de Madame Teia, do começo de 2024.

De quem é a culpa?

Essa queda na popularidade dos filmes de super-heróis tem ganhado explicações diversas, como aqueles dos setores ligados à extrema direita, de diferentes países, que têm atribuído ao discurso identitário a perda de interesse nesses filmes. Contudo, essa opinião não explica a situação em seu conjunto.

Em comparação com as produções anteriores, de fato há, em média, um público menor entre filmes que trazem de forma aberta um apelo feminista ou antirracista. Contudo, a hipótese de que a rejeição ao discurso identitário seja motivo para a queda no público não se sustenta como explicação

Pode-se, para tanto, considerar o sucesso de filmes abertamente feministas, como o foi Mulher Maravilha (2017), ou de valorização das culturas de origem africana, como foi o caso de Pantera Negra (2018). Esses dois filmes tiveram continuações, sem o mesmo sucesso das obras originais e sofreram muitas críticas. Contudo, isso certamente não se deve ao discurso feminista ou antirracista, afinal obras que não usam esse discurso também receberam críticas negativas ou tiveram bilheterias menores.

O fato de filmes com temática abertamente identitária terem conseguido sucesso mostra o quanto o discurso da extrema direita é desprovido de sentido. Pode-se ainda adicionar a essa discussão o fato de filmes com forte discurso identitário, como foi o caso de Barbie (2023), alcançarem uma boa fatia do público. Por outro lado, o sucesso de filmes que problematizam o identitarismo, como Ficção americana (2023), e mesmo o trabalho de James Gunn em filmes sobre super-heróis, em tom sarcástico, mostra como o tema suscita interesses diversos e pode gerar importantes discussões.

Uma explicação?

Contudo, se a resposta simplória e desprovida da materialidade da extrema direita não explica a realidade, o que explica a crise de filmes centrados em super-heróis? O que explica toda e qualquer crise pela qual passou o cinema em seu mais de um século de existência: o esgotamento comercial desses filmes e a dificuldade das grandes produtoras em se renovar.

Se no começo da franquia Vingadores ou do Universo DC ainda havia espaço para alguma criatividade em suas produções, dezenas de filmes e anos depois o que se tem são apenas histórias que se repetem de forma infindável. E isso sem falar dos filmes da DC, cujas melhores produções foram aquelas realizadas fora do universo cinematográfico compartilhado…

Com raras exceções, todos os filmes de heróis produzidos nesse período recente apresentam o mesmo tema: o super-herói ou alguém de seu núcleo de pessoas próximas comete algum erro e a história do filme se centra na busca por tentar resolver esse problema. Fica, então, a sensação de que, caso alguém pensasse poucos segundos antes de cometer algum erro primário – como Peter atrapalhando o feitiço do Doutor Estranho ou T’Challa aceitando o desafio do primo ou Tony Stark criando Ultron, entre outros exemplos – sequer haveria esses filmes. E pior quando a resolução de problemas simplórios se mostra também simplória…

O acontecimento colocado como central, muitas vezes, se mostra pouco para sustentar uma narrativa. Nos primeiros filmes desses universos compartilhados, quando ainda eram apresentados personagens novos e interessantes e havia outras histórias a serem contadas, era possível se distrair com esses filmes. Contudo, tanto tempo depois, o que o espectador consegue enxergar é apenas a mesma história – que se mostra tediosa na atualidade – ainda que com outros personagens. Por que então perder duas ou três horas vendo algo óbvio, irrelevante e sem criatividade?

Crise

Não é exagero falar em crise do gênero de filmes de super-heróis, crise essa que não tem relação com o identitarismo, mas com a própria forma comercial que assumiu o cinema diante da dominação de Hollywood. Essa crise não é exatamente inédita.

Em outro momento, percebendo o sucesso dos filmes do gênero slasher, as grandes produtoras norte-americanas investiram à exaustão nessas histórias em que um assassino perseguia um grupo de jovens que se reúne para fazer sexo, se divertir e usar drogas. Não demorou para que o público se cansasse desses filmes, depois de sua repetição à exaustão, e esse produto comercial deixasse de ser algo válido para as grandes produtoras.

Contudo, na ausência do que colocar no lugar, ainda foram produzidos e lançados alguns filmes que ou eram um fracasso de público ou eram produções que beiravam o ridículo.

Nesse processo, alguns cineastas perceberam a crise e começaram a fazer uma reflexão sobre o próprio trabalho, usando a metalinguagem, e disso surgiu, entre outras obras, a franquia Pânico, dirigida por Wes Craven. São filmes cheios de clichês que, criticados e problematizados, permitem tanto pensar a narrativa fílmica como mostrar possibilidades de soluções criativas.

 

Reflexões

Nas produções sobre super-heróis se percebe um processo semelhante, onde se faz uma reflexão sobre os próprios filmes, representando a si mesmo de forma sarcástica. Os filmes da franquia Deadpool são o exemplo mais evidente disso, inclusive satirizando o Universo Marvel. O filme mais recente protagonizado por Deadpool marcaria sua entrada no Universo Marvel. Contudo, as coisas não parecem ter saído como planejado. Entre as diversas menções que o protagonista faz a esse fato, diz a Wolverine, também a ser introduzido no Universo Marvel, que ele “chegou numa fase ruim”.

Entre as séries, o exemplo mais conhecido de produções que exploram a metalinguagem é The Boys – que, inclusive, faz uma dura crítica ao uso comercial do identitarismo. São também expressão desse processo de autorreflexão as séries Powers (2015) e a mais recente A franquia (2024). Dentro do Universo Marvel, She Hulk (2022) fez um conjunto de reflexões, ironizando o baixo orçamento colocado na série. Ironiza ainda que Kevin Feige, principal produtor do universo Marvel, seria na realidade é um robô que pensa as histórias a partir de algoritmos.

Outro problema das histórias têm sido o fato de, diante de sua dificuldade em contar novas histórias minimamente criativas, fazer apelos forçados para versões antigas de super-heróis, usando a desculpe de um multiverso. O exemplo mais forçado disso puderam ser vistos no último Homem-Aranha (2021) e no filme solo de Doutor Estranho (2022).

Multiverso

No terceiro filme da franquia Deadpool, não há apenas a referência à fase ruim do Universo Marvel, mas até mesmo uma crítica explícita ao multiverso. Em um filme que resgata versões abandonadas de super-heróis da Marvel, como Electra e a Laura de Logan, o protagonista afirma que seria preciso parar “com o lance do multiverso. Não é legal. Foi só fracasso após fracasso, após fracasso”.

A DC Comics não conseguiu consolidar um universo compartilhado de filmes, e, por isso, acabou tendo muitos de seus maiores sucessos em séries de televisão. Nestas, qualquer possibilidade de multiverso foi pulverizada com o evento conhecido como Crise nas Infinitas Terras, exibidos na televisão entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020.

Na ocasião, foi retomado brevemente, entre outros personagens abandonados há bastante tempo, até mesmo o Flash da década de 1990. Repetindo o que a própria DC fez nos quadrinhos entre 1985 e 1986, a história de seus super-heróis teve uma espécie de reiniciação e se buscou pôr fim a suas várias cópias em outros universos.

Futuro?

Essa crise vivenciada pelas histórias de super-heróis não é um processo que se dá de forma linear ou tem explicações ou mesmo soluções simples. O primeiro passo para superá-la é justamente o de encarar o problema. Como aconteceu com o cinema de horror, as autorreflexões que vão sendo feitas nas produções sobre super-heróis não são apenas uma expressão de crise. Elas se constituem também em uma tentativa de refletir sobre essas narrativas, compreender seus limites e, como principal aspecto, buscar mostrar possibilidades para que se possam encontrar novos e criativos caminhos.

 

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