Enola Holmes 2: fatos históricos são ainda piores do que parecem

Trabalhadoras de Londres não foram as primeiras a sofrer com fósforo branco.

Se você ficou tão apaixonado por Enola Holmes como eu fiquei, certamente assistiu a sequência tão logo ela estreou na Netflix em 4 de novembro de 2022. Dessa vez os criadores dos filmes Harry Bradbeer e Jack Thorne se afastaram um pouco mais do enredo dos livros de Nancy Springer sobre a irmã mais nova de Sherlock Holmes. A nova produção traz uma trama original, com pequenas referências ao livro Enola Holmes: O Caso da Senhorita Canhota. Mas ainda muito interessante e com um fato histórico intrigante e um tanto assustador.

Atenção: Contém spoilers do filme.

Millie Bobby Brown está de volta em Enola Holmes 2, filme que suaviza fatos históricos
Millie Bobby Brown está de volta em Enola Holmes 2, filme que suaviza fatos históricos

Voltamos a encontrar Enola (Millie Bobby Brown) em 1888, quando o que parecia um simples caso de desaparecimento levou a jovem detetive a Greve de operárias da fábrica de fósforo Bryant & May. O evento por si só é histórico por ter sido o primeiro movimento liderado por trabalhadores não qualificados. E o filme mergulhou tanto na história que a “desaparecida” Sarah Chapman (Hannah Dodd) foi a verdadeira líder da greve. Embora a Sarah da vida real não fosse órfã e nem trabalhasse no teatro à noite. Inclusive, sua mãe e irmã mais velha também trabalhavam na fábrica. Mas um pouco de licença poética não faz mal a ninguém, certo?

Mas o que as trabalhadoras protestavam?

Greve das operárias da fábrica de fósforos de Londres

Motivos não faltavam. As funcionárias tinham péssimas condições de trabalho: jornadas de quatorze horas, baixos salários, multas arbitrárias e ainda adoeciam por trabalharem sem proteção com o fósforo branco, uma substância altamente tóxica. Mas a grave foi a última etapa de uma batalha na qual não estavam sozinhas.

Em 15 de junho de 1888 a Fabian Society (grupo cuja intenção era promover os princípios social-democráticos) propôs um boicote à Bryant & May. Em 23 de junho do mesmo ano a ativista Annie Besant publicou um artigo intitulado “Escravidão Branca em Londres” (não muito politicamente correto, eu sei) no The Link, onde denunciava ao grande público a revoltante situação a qual essas trabalhadoras eram submetidas. Foi no dia 11 de julho que 1.400 mulheres largaram suas bancadas de trabalho e iniciaram a greve.

Não foi uma batalha fácil, principalmente porque não tinham apoio de um sindicato (na época quase exclusivamente dos homens). E embora tenham conseguido relativamente logo jornadas e salários melhores, foi apenas em 1901 que a fábrica deixou de usar totalmente o fósforo branco.

Mas afinal, qual é a diferença do fósforo branco e do fósforo vermelho?

Bem, o fósforo é um elemento químico que se organiza em estruturas, formando alótropos. Em uma simples explicação da Mestre em Química pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Carla Irene Zampieron, “diferentes organizações dos átomos geram alótropos diferentes, com características diferentes”. Enquanto o fósforo branco tem estrutura molecular de quatro átomos (P) formando um tetraedro, o vermelho consiste em macromoléculas formadas por ligações desses tetraedros (Pn). Como na imagem abaixo:

Imagem: Manual da Química
Fósforo vermelho em pó
Fósforo vermelho

Mas essa é a diferença em nível molecular. Visivelmente, o fósforo vermelho é um pó. E como não entra em combustão sozinho precisa de enxofre. E isso pode te surpreender, mas o palito de fósforo na verdade tem enxofre. O fósforo está na lixa da caixinha. São fabricados assim desde 1855, quando o sueco Carl Lundström criou o que chamou de “fósforos seguros”. É que antes disso os dois elementos iam juntos na ponta do palito, o que fazia com que pudessem ser acendidos esfregando-os em qualquer lugar. Sabe aqueles filmes de faroeste onde o cowboy acende o fósforo na parede, bota ou até na unha? Não é virilidade, é química! Porém, isso também podia fazer com que acendessem dentro da caixa, dentro do bolso da pessoa. O perfeito oposto de seguro.

Fósforo branco guardado em recipiente com água*
Fósforo branco

 

Enfim, trabalhar com uma substância é mais barato que com duas. Principalmente se você precisa deixá-las em partes separadas do produto. E como o fósforo branco não precisa de enxofre para entrar combustão, parecia perfeito. Só que não. Não deixe a inocente aparência cerosa te enganar. O simples contato com o ar faz com que entre em chamas, e por isso precisa ser armazenado em um recipiente com água. Além de ser extremamente tóxico, como mostrado no filme.

Operário com ‘mandíbula de fósforo’

Mas não pense que os donos da Bryant & May não sabiam dos riscos. O primeiro caso registrado de mandíbula de fósforo (ou phossy jaw) foi em 1838, justamente de uma menina que trabalhava em uma fábrica de fósforos em Viena. Portanto, 50 anos antes da greve das trabalhadoras de Londres. Quem adquiria a doença começava sentindo fortes dores de dente e gengivas inchadas. Posteriormente se formavam abscessos no osso da mandíbula, que também brilharia no escuro com uma cor branca esverdeada. E havia danos cerebrais. A única forma de salvar a pessoa era removendo cirurgicamente os ossos afetados. Caso contrário, os órgãos começariam a falhar e levariam à morte. Tudo isso apenas por inalar os vapores do fósforo branco.

Calcula-se que cerca de 11% dos operários desenvolvia a doença, e 20% dos casos resultava em morte. Aparentemente, os donos das fábricas consideravam “perdas aceitáveis”. É triste pensar que para alguns o lucro monetário seja mais importante que a vida humana. E o fósforo branco só deixou de ser usado na indústria em 1906, com a proibição da Convenção de Berna daquele ano.

Enfim, Enola Holmes 2 trouxe mais que um ótimo entretenimento. Trouxe um fato histórico com muito a se pensar.

Nota: 9,5

Agradeço a Carla Irene Zampieron pelas explicações referentes à química do fósforo.

Fontes:

Aventuras na História

Observatório do Cinema

Mega Curioso

Wikipedia 1 2 3

Manual da Química

TabelaPeriódica.org

Trailer:

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