Game of Thrones: a última batalha

Uma das principais qualidades de Game of Thrones sempre foi a de trazer surpresas previsíveis. Os acontecimentos importantes, tanto os que agradam como os que desagradam o público, sempre foram precedidos por muitos indícios do que realmente aconteceria, ainda que em muitos casos a vontade do público fosse a de acontecesse outra coisa. Assim foi com a traição de Mindinho contra Ned Stark, a derrota de Stannis Baratheon para Ramsay, o Casamento Vermelho, o assassinato de Rickon e tantos outros acontecimentos. O fato é que uma das coisas que desde o começo esteve presente na série tem sido a coerência da narrativa e qualquer análise feita de forma fria, sem levar em conta nossa simpatia irracional por qualquer personagem, mostra isso.

Claro que estamos falando da reação de Daenerys Targaryen diante dos acontecimentos mais recentes. O episódio da semana anterior deixou no ar a questão de se a Rainha dos Dragões teria a conclusão de sua história como a Rainha Louca, seguindo os passos de seu irmão. Muitos textos foram escritos para mostrar que a série havia se perdido e que teriam estragado, no final, uma das personagens mais queridas pelo grande público. O fato é que alguns (poucos) textos também foram escritos para demonstrar que, caso fosse confirmada, a narrativa da Rainha Louca não seria tão incoerente com a trajetória vivida até aqui por Daenerys (indicamos a leitura deste detalhado texto).

No texto da semana passada também apontei alguns elementos que procuravam mostrar que não seria incoerente a narrativa de Daenerys concluir como a da Rainha Louca ou de algo parecido. Considerando a forma implacável e violenta como a Rainha dos Dragões sempre lidou com seus problemas, seria em certa medida incoerente vê-la agora pacífica e diplomática, mesmo diante de todas as tragédias que enfrentou nos episódios mais recentes. O episódio desta semana mostrou a forma como os produtores responderam à questão, ou seja, se guiariam o roteiro pela lógica da narrativa contada até agora ou se procurariam agradar os fãs de uma personagem específica.

(spoilers a partir da daqui)

Com todos os acontecimentos de semana passada, estava claro que nesta a história estaria centrada no embate dos subversivos liderados por Daenerys contra o exército de Cersei e seus mercenários. O episódio tem toda a sua primeira parte dedicada à conspiração de Varys contra a Rainha dos Dragões, tentando convencer Jon Snow a ajudá-lo em alguma artimanha golpista. Essa parte lembrou muito a negativa de Ned Stark em ajudar no golpe para derrubar Cersei, no começo da série. Seguindo os passos do pai de criação, ao procurar mostrar a verdade sobre a sucessão do trono diante da morte de Robert, agora Jon cumpriu a promessa de aliança que tinha feito com Daenerys, independente do preço que pudesse vir a pagar.

Foram contadas muitas histórias paralelas (algumas bem inúteis, como a dos irmãos Clegane), ainda que a mais importante seja a que levou Cersei e Jaime a se encontrarem e morrerem juntos. Lena Headey e Nikolaj Coster-Waldau mostraram os excelentes profissionais que sempre foram, numa despedida bastante marcante. O arco dos dois personagens termina com a concretização da redenção de Jaime, não pelas crueldades que fez em nome da irmã, mas pelo sofrimento que causou a ela, como no caso do estupro ou quando a abandonou para lutar na batalha contra o Rei da Noite. Este foi outro momento de decepção para uma parcela de espectadores, que sonhava com Arya matando Cersei.

O processo de conspiração contra Daenerys é derrubado, com apoio de Jon e Tyrion, e Varys é morto por Drogon. Chegamos ao campo de batalha sem saber exatamente o que vai acontecer. Daenerys consegue destruir as armas que antes havia matado um de seus dragões e, também, o portão principal, que permite sua tropa entrar. Parte do exército de Cersei é morta pelo ataque do dragão, incluindo os mercenários, que mostraram uma participação efêmera e mesmo inútil em suas poucas aparições. O exército de Cersei está encurralado e Jon, à frente das tropas subversivas, torce para que eles se rendam. No final das contas eles se rendem, jogam suas armas no chão, e há uma longa espera para que soe o sino que simboliza o fim da batalha.

Mas então tem o que para muitos é uma reviravolta surpreendente e simboliza onde a série teria se perdido definitivamente. Daenerys e Drogon partem para destruir toda a cidade. O exército de Cersei volta à batalha, mas não há muito o que ser feito. O fogo vai destruindo tudo e matando centenas ou mesmo milhares de pessoas, soldados ou não, em um massacre que certamente é um dos maiores das séries de televisão até hoje. Em meio a isso, há controvérsia no exército subversivo, em especial por parte de Jon Snow, que havia apostado que Daenerys não mataria vidas inocentes e destruiria a cidade. Se há algo mal trabalhado nessa suposta reviravolta da série certamente é a percepção que Jon tem dos acontecimentos, claramente perdido, em episódios que não tem desenvolvido sua personalidade nem o localizado de forma coerente suas ações. Esse mal desenvolvimento poderá ter seu ápice se de fato Jon assassinar Daenerys no último episódio.

E chegamos à grande questão: os atos recentes de Daenerys foram incoerentes dentro de sua trajetória? Certamente que não, e as razões são várias. Uma delas é que há muitas temporadas foi deixado claro que Daenerys é guiada pela vontade de vingar sua família e, se nessa luta acabasse ganhando o trono, estaria no lucro. Ela estava à frente de uma cidade e de construções que simbolizavam o sofrimento e a destruição de sua família, e contra isso levou a cabo uma cruel vingança.

Por outro lado, Daenerys sempre buscou construir sua liderança pelo carisma, distribuindo as benesses que os setores mais pauperizados queriam, mas nunca foi uma articuladora política. Uma de suas ações mais comuns em toda a série foi a de não ouvir os conselhos das pessoas, inclusive das mais próximas. Quando teve que começar a governar e percebeu as dificuldades que isso colocava, decidiu partir para continuar a guerra, afinal tudo aquilo não lhe interessava, e sim continuar incendiando tudo (em um primeiro momento, metaforicamente) pelos Sete Reinos.

Por fim, como ressaltamos semana passada e no começo deste texto, Daenerys nunca mostrou qualquer postura de diálogo com seus inimigos, atuando sempre na base do ultimato e, quando vitoriosa, promovendo inclusive massacres em locais públicas. O carisma com os setores mais pobres e explorados sempre foi contrabalançado pela crueldade sanguinária contra seus inimigos ricos e de elites (ou, às vezes, até matando aliados, supostamente por engano). Possivelmente não se trata de loucura, mas de uma forma de fazer política comum aos Targaryen. Em sua trajetória, e isso é assumido por ela no episódio desta semana, o que Daenerys construiu como sua marca foi o medo.

Claro que a narrativa de Daenerys, ainda que coerente em sua construção, tem seus problemas. Em sua trajetória, Daenerys acaba se enquadrando na narrativa da mulher que sofre algum abuso, físico ou psicológico, e somente a partir disso encontra força para lutar contra sua opressão. Isso acontece também com outras mulheres protagonistas da série, inclusive Arya e Sansa. As irmãs Stark, assim como Daenerys, por conta da lógica interna de suas narrativas, acabam encontrando na violência e na vingança o escape para sua raiva em relação ao mundo. Game of Thrones tem como marca a violência extrema contra seus personagens, tanto homens como mulheres, que acabam encontrando somente nessa linguagem a resposta para os seus problemas.

(fim dos spoilers)

O que virá na próxima semana é uma incógnita, afinal poucos sobreviveram a esta última batalha. Circulam muitas especulações, em sua maioria pouco consistentes. Mais do que nunca, o que restou do exército dos subversivos está dividido, em especial depois da vitória (bastante óbvia) que conquistaram. A forma como se deu essa vitória e os resultados que dela virão são o centro do próximo episódio, que deve encerrar a série e abrir espaço para outras derivadas dela.

 

Nota: 8

Arquivos

Leia Mais
Morre Matthew Perry, o Chandler de ‘Friends’