Preciso começar com uma verdade inconveniente: Todo mundo, gostando ou não, acaba vendo os remakes em live action da Disney. Nem que seja para reclamar com propriedade da indústria da nostalgia. Porém, quando se trata de mais uma adaptação de Peter Pan a curiosidade ganha motivadores adicionais. Impossível não querer conferir Peter Pan & Wendy, que chegou ao Disney+ em 28 de abril.
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O fato é que assim como o Capitão Gancho de Jude Law a história “cresceu errado” (envelheceu mal). Quando J. M. Barrie escreveu a peça em 1904, que em 1911 se tornou o romance Peter e Wendy, o contexto social era outro, e muitas coisas então tidas como senso comum hoje são inaceitáveis. A animação da Disney de 1953 até dá uma leve amenizada nesses conceitos ultrapassados em relação à história original, mas ainda traz argumentos bastante machistas e racistas com relação aos povos originários americanos. Tanto é que a página do longa no Disney+ traz uma mensagem (mostrada também ao dar play) sobre a representação errônea que ele traz.
Tendo isso em mente, o Peter Pan reacionário de meia-idade do filme Tico e Teco: Defensores da Lei simboliza mais do que a rejeição da indústria cinematográfica à velhice. É que mesmo sendo uma história e personagem queridos por simbolizar a pureza da infância e aquele medo de crescer por qual todos passam em algum momento, traz valores que já não queremos para nossas crianças. Algumas releituras até tentam corrigi-los, mas sempre em prequels ou prólogos. Como a minissérie Neverland, do Syfy, ou o filme Hook: A Volta do Capitão Gancho de Steven Spielberg. Até que David Lowery e Toby Halbrooks tivessem coragem de mexer no texto original para o filme Peter Pan & Wendy.
A primeira coisa digna de nota (e a qual cresci para ver) é a sororidade entre Wendy (Ever Anderson), Sininho (Yara Shahidi) e Tigrinha (Alyssa Wapanatâhk). É que mesmo sendo uma criança que gostava muito de Peter Pan, nunca entendi muito bem o ciúme exagerado entre as três personagens femininas. Não fazia sentido na minha cabeça que os meninos simplesmente se divertissem enquanto as meninas se odiassem. E pior, por causa do Peter Pan! Aliás, se é uma história infantil, por que colocar crianças (e uma fada) em uma disputa amorosa?
Além disso, Wendy deixa de ter uma postura maternal para ser uma líder, como sua própria mãe sugere que ela seja. E quando os Meninos Perdidos (que não são todos meninos e não há nenhum problema nisso) perguntam se ela poderia ser mãe deles, responde que nem sabe ainda se quer ser mãe. Pois essa realmente não é decisão para ser tomada na infância. E nem ela, Tigrinha ou Sininho são mais donzelas indefesas. Agora salvam a si mesmas e uma à outra.
E é preciso parabenizar a representatividade. Não só porque a tribo nativo americana passou a ser retratada com dignidade e Sininho é interpretada por uma atriz negra, mas porque os Meninos & Meninas Perdidos são de etnias diversas. E também há lugar para PCDs na Terra do Nunca, com o britânico Noah Matthews Matofsky como Slightly. O primeiro ator com Síndrome de Down com um personagem de destaque em um filme Disney. É uma pena que esses personagens tenham pouco tempo de tela, a própria tribo nativo americana aparece por poucos segundos. E mesmo Tigrinha ganhando mais destaque ainda aparece pouco. Mas a verdade é que em um filme de apenas 1h40 não há tempo para explorar muita coisa.
Até João (Joshua Pickering) e Miguel (Jacobi Jupe) têm pouco destaque. Mas a verdade é que os irmãos nunca tiveram muita razão de ser, uma vez que só conseguem carona para a Terra do Nunca porque Wendy pede. O Peter Pan de Alexander Molony é o que essa narrativa precisava: sagaz e irresponsável. Exatamente o que uma criança que se recusa a crescer representa. Porém, é legal ver o personagem ganhando consciência de que suas atividades têm consequências. Principalmente com a rivalidade entre Peter e o Capitão Gancho ganhando um motivo pertinente. Bem como a capacidade dos dois de se perdoarem.
Quanto a parte visual do filme, essa é um espetáculo à parte. Apesar de muitas cenas escuras, as belas paisagens do litoral canadense que serviram de cenário para a Terra do Nunca compensam tudo. Os efeitos são magníficos. E as adaptações de cenas marcantes da animação de 1953, como a do Big Ben e quando o navio pirata se enche de pó de fada, ajudaram a simbolizar o que esse novo filme representa.
Uma outra mudança bem-vinda foi o vestido mais longo de Sininho. É que quando você tem em mente que todos os desenhistas da versão de 1953 eram homens, que a história era direcionada para crianças e que a personagem representa uma fada adolescente, se dá conta de como ela era sexualizada. E piora com a descoberta de que a atriz que serviu de modelo para Sininho foi a mesma de Wendy, Kathryn Beaumont, na época apenas uma menina. Além do mais, Yara Shahidi com seus 23 anos possui toda a expressividade e força que essa nova leitura da fada pedia.
A trilha sonora original de Daniel Hart e a direção David Lowery foram tudo que Peter Pan & Wendy precisava. Realçando a fantasia e o senso de aventura, sem deixar de lado a emoção. É por todos esses motivos, e mais alguns, que mesmo sendo fruto da indústria da nostalgia o filme merece ser visto e notado. Pois Peter Pan & Wendy consegue ser mais que um mero remake em live action.
Nota: 8
Confira o trailer: