Matrix e a revolução que não houve

Cerca de vinte anos atrás, em março de 1999, Matrix estreava nos cinemas. O filme conquistou grande sucesso de público e crítica, ao refletir sobre diversos aspecto da realidade vividos no cotidiano pelas pessoas, como a relação com a tecnologia e com o meio ambiente. O filme, com seu grito de “acorde”, apesar de ser uma produção hollywoodiana, se tornou uma expressão da revolta diante dos ataques que governantes em diferentes países faziam contra os direitos dos trabalhadores. Eram tempos do crescimento do movimento que ficou conhecido como “antiglobalização”, que ocupou as ruas em reuniões de organismos internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, e que pouco depois abandonariam o confronto direto para se somar a governos “progressistas” na construção de sucessivas edições do Fórum Social Mundial.

O filme Matrix tem uma história bastante simples, que remete a uma versão moderna da Caverna de Platão. Os seres humanos vivem numa realidade artificialmente criada por máquinas, a Matrix. Séculos antes, o mundo teria sido destruído e os humanos escravizados, servindo como um tipo de bateria para fornecer energia às máquinas. Essa é possivelmente uma das metáforas mais fortes do filme, afinal remete aos trabalhadores que sustentam o capital e que mantém uma relação de estranhamento com o produto do seu trabalho. O trabalhador não conhece o valor produzido pelo seu trabalho da mesma forma que no filme as pessoas estão presas a essa realidade artificial chamada de Matrix. Como ocorre no capitalismo, na Matrix o processo de exploração do trabalho está oculto em uma mercadoria fetichizada.

Nesse cenário de distopia, séculos antes, um grupo de humanos organizou a resistência à opressão promovida pela Matrix. Contudo, para que a resistência conquistasse novos adeptos, as pessoas precisariam ser literalmente acordadas. No interior da Matrix havia algumas pessoas que acabavam sendo os potenciais revoltosos, afinal, ainda que sem saber exatamente o que estavam acontecendo, se sentiam desconfortáveis com aquele ambiente, como acontecia com o protagonista do filme, um hacker conhecido como Neo. Como em Platão, onde as pessoas precisariam ver a luz, por mais que a cegassem em um primeiro momento, em Matrix deveriam ver a realidade em sua materialidade. Essa realidade concreta é chamada, em certo momento do filme, de “deserto do real”.

Pode-se dizer que o filme faz um elogio à subversão, chamando todos a acordarem antes que uma grande tragédia possa vir a consumir a sociedade e o planeta, colocando em cena personagens que seriam a célula de uma organização revolucionária dedicada a destruir a Matrix. Contudo, ainda que haja uma mensagem da necessidade da organização como forma de transformação da realidade, o filme tem seus claros limites políticos. Sua narrativa se perde na busca e na idolatria do “escolhido”, o protagonista Neo, que seria um ser humano especial com a capacidade de destruir sozinho a Matrix. O filme acaba apresentando uma necessidade de sacrifício quase religioso, não apenas do próprio Neo, mas dos seus companheiros que voltam todos os seus esforços para ajudar as ações do protagonista.

Em suas continuações, por meio dos filmes Reloaded e Revolutions, ambos lançados em 2003, essa personificação do salvador avançaria no discurso de que nada é possível de mudar. Entende-se ao longo da narrativa que mesmo esse “escolhido” seria uma peça dentro da própria Matrix, portanto, até mesmo a subversão por ele representada estaria sob controle e levaria a um ciclo onde a Matrix sempre voltaria a existir. Ao dar maior ênfase à figura messiânica de Neo, profetizado como o “escolhido”, o filme deixa de contar a história de uma organização rebelde para se dedicar a mostrar a todos que, mesmo que a luta seja importante, não há possibilidade de revolução e que o capitalismo sempre conseguirá se reerguer. No limite, o que o filme aponta é que o papel da subversão e da revolta passa por promover reformas na sociedade e não por colocar abaixo o sistema que explora a humanidade.

 

Nota: 8

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