Parafraseando um certo influencer, tem que acabar com o estereótipo da arte progressista, porque com arte também dá pra pregar o reacionarismo. Ok, se existe liberdade de expressão e arte é expressão, então cada um expõe o que considera certo. Mas quando se usa a liberdade de expressão como desculpa para silenciar alguém então entramos em um verdadeiro paradoxo.
Sempre houve arte para os mais diversos gostos, e com as que trazem alguma forma de narrativa não é diferente. De progressistas a conservadores, todo mundo acha algo que lhe agrade. O problema é quando alguém, ou, nesse caso, um estúdio, muda sua proposta por causa de dinheiro e política. Estou falando de Disney e Pixar, que depois de muitos acertos parecem querer voltar uns setenta anos no tempo.
Claro que não sou ingênua de acreditar que a Disney havia adotado a diversidade e inclusão em suas histórias por simples bondade no coração dos acionistas. Havia demanda de mercado e como qualquer empresa resolveram investir nisso. Porém, existem os roteiristas, animadores, diretores e tantos outros profissionais contentes por poderem contar histórias nas quais acreditam. De repente, todos vêm enfrentando um ambiente de trabalho tóxico e horas de trabalho extra refazendo algo praticamente pronto.
Pessoalmente, vejo a inclusão de personagens diversos (seja por cor, religião, gênero, orientação sexual, deficiência ou qualquer outro motivo) uma questão de humanidade e percepção do mundo. Porém, embora muitos tenham comemorado quando a Disney passou a fazer filmes mais inclusivos, teve aqueles que taxaram de “decisão política”. Ou meu favorito, “agenda esquerdista”. Mas acredito que essa decisão era mais econômica mesmo, tentando reconquistar um público que, agora crescido, via certa crueldade em seus clássicos.
Por outro lado, voltar atrás nessas decisões com o intuito de se alinhar com pessoas que ocupam posições de poder é sim uma decisão política. Talvez os alarmes tenham começado a soar em 2022, quando Peter Dinklage criticou a Disney por decidir fazer um live-action de Branca de Neve e os Sete Anões. Na ocasião o ator criticou o estúdio de ser “progressista por um lado, mas, por outro, ainda contando essa história retrógrada sobre sete anões morando juntos numa caverna”. Isso porque as atrizes escaladas para fazerem Branca de Neve e a Rainha Má foram Rachel Zegler e Gal Gadot, uma atriz de ascendência latina e uma israelense e judia. Há algum tempo, jamais imaginaríamos poder ver atrizes assim interpretando tais personagens em uma produção hollywoodiana.
Naquele momento a Disney prometeu “evitar reforçar esteriótipos da animação original, […] propondo uma outra abordagem para esses sete personagens, com consultas a membros da comunidade de nanismo”. Aparentemente isso nunca foi feito, já que as primeiras imagens liberadas do filme mostravam sete pessoas aleatórias acompanhando a princesa, nenhuma delas com nanismo ou qualquer tipo de deficiência visível. Posteriormente substituídos por anões feitos em CGI. Em certo momento a comunidade de atores com nanismo chegou a criticar Dinklage por “tirar o emprego de sete deles”. Mas convenhamos, será que era tão difícil assim para a Disney montar uma equipe de consultoria para retratar esses sete personagens com dignidade e respeito?
Tudo bem, talvez esse tenha sido apenas um caso de preguiça. Só que não parou por aí. Outras notícias deixaram o público um tanto quanto perplexo. Em setembro de 2024 foi revelado que a equipe responsável por Divertida Mente 2 sofreu pressão dos executivos da Pixar para deixar Riley “menos gay”. Aparentemente, não queriam que o filme sofresse a mesma represália que Lightyear. É fato que em uma pesquisa rápida você encontrará inúmeras críticas sobre a cena do beijo entre duas personagens femininas. Mas acredito muito mais que o fracasso de Lightyear esteja associado a falta de timing e o excesso de aposta na indústria da nostalgia.
A caça às bruxas – ou melhor, à comunidade LGBTQIA+ – continuou com a notícia de dezembro de 2024 de que Disney e Pixar resolveram remover uma história trans da série Ganhar ou Perder, que estreou no Disney+ em 19 de fevereiro deste ano. A personagem, que tem a voz da jovem atriz trans Chanel Stewart de 18 anos, permanece na trama, mas teve o perfil mudado para uma menina cisgênero. Além da decepção da atriz e sua mãe, vários funcionários se sentiram frustrados por terem que abrir mão da história. Em entrevista ao The Hollywood Reporter, um deles desabafou:
“O episódio na sua forma final era tão lindo — e ilustrava de forma tocante algumas experiências de ser trans. Ele literalmente salvaria vidas ao mostrar a quem se sente sozinho que há pessoas que entendem. É frustrante que a Disney tenha decidido gastar dinheiro para não salvar vidas.”
Essas mudanças têm sido lideradas pelo CEO Bob Iger, que já disse publicamente querer diminuir as mensagens sociais das tramas. Em uma entrevista, Iger afirmou:
“O objetivo principal dos nossos filmes e programas não é promover mensagens. Eles precisam ser entretenimento, e onde a Disney pode ter um impacto positivo, ótimo.”
Tá bom, mas o que faremos então com todos aqueles contos de fada? Porque todos eles têm alguma mensagem. Concordo que uma boa história transmite sua mensagem nas entrelinhas, pois se fica explícita ou foi mal contada ou subestima a inteligência do ouvinte. Mas essa decisão nada tem a ver com preocupação com a qualidade do entretenimento, tanto que está deixando criadores de cabelo em pé. A ex-assistente da Pixar Sarah Ligatich, chegou a declarar:
“É 100% político. A Disney acabou de fazer um acordo com Trump […] Não consigo dizer o quanto chorei ontem pensando naquela conversa que David teve com Chanel. Você não está apenas pedindo para alguém interpretar alguém que não é, mas também para fazê-lo entender uma conversa política que está tão além dele. Eles tinham essa história pronta há dois anos. Poderiam tê-la lançado durante a presidência de Biden, mas escolheram não fazer isso.”
Todavia, esses não foram os únicos cortes exigidos em produções. E não ficaram apenas na temática LGBTQIA+. Ainda em dezembro de 2024 revelou-se que o filme Saltadores teve sua mensagem ambiental reduzida. Acontece que o futuro longa da Pixar, que deve chegar aos cinemas em 2026, tem todo seu foco em ambientalismo. O que não é exatamente novidade para a Disney e Pixar, vide Wall-E, e nem deveria ser tomado como tema político. Uma vez que estamos falando de como tratar o planeta em que por ventura nós vivemos.
Mas, mais uma vez, usam um fracasso de bilheteria para justificar a mudança. Nesse caso o bode expiatório foi Mundo Estranho, que além de um protagonista gay tem uma grande pauta ambiental. Honestamente, não entendo a péssima recepção que esse filme teve. Acho maravilhoso! Mas também não entendo o que a maioria das pessoas pensam, então deve ser por isso.
E as mudanças também afetam produções antigas, pois em fevereiro de 2025 foi anunciada a diminuição nos avisos de conteúdo preconceituoso e estereotipado que acompanham os clássicos no Disney+. Isso faz parte das alterações nas políticas de diversidade, equidade e inclusão da empresa, que também inclui substituir um fator de desempenho chamado “Diversidade & Inclusão” por uma métrica denominada “Estratégia de Talentos”.
Sobre os avisos informativos que acompanham clássicos como Peter Pan e Dumbo, o que era um verdadeiro mea-culpa que contextualizava a época das produções virou uma simples frase que pode passar batido. Onde antes se lia “Este programa inclui representações negativas e/ou maus tratos de pessoas ou culturas. Estes estereótipos eram incorretos na época e continuam sendo incorretos hoje em dia. Em vez de remover esses conteúdos, queremos reconhecer o impacto nocivo que eles tiveram, aprender com a situação, e despertar conversas para promover um futuro mais inclusivo junto”, agora diz somente que a obra pode ter “estereótipos ou representações negativas”.
Todo esse retrocesso vai na contramão das inúmeras inovações que a Disney tem em sua trajetória, seja nas tecnologias usadas ou na forma de contar histórias. Mas talvez os frutos (ou a falta deles) dessas escolhas já estejam sendo colhidos. É o terceiro ano consecutivo em que a Disney não leva o Oscar de Melhor Animação, o máximo até hoje eram dois anos. E os quatro oponentes de Divertida Mente 2 trouxeram aspectos que o estúdio vem querendo abolir. Fica a questão: Será que alinhamentos políticos valem mais que o reconhecimento de um trabalho bem feito?