Segundo filme de Coringa promete ignorar novamente o que o personagem é
Segundo filme de Coringa promete ignorar novamente o que o personagem é

Coringa: para assistir com a mente aberta

“ Espero que minha morte valha mais centavos do que minha vida.”

A frase acima resume da maneira mais direta possível como era a vida de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) antes de se transformar no famoso vilão Coringa. Uma vida vazia de significado, ou melhor, uma vida na qual o único significado, nos raros momentos onde não era apenas invisível socialmente, era cumprir o papel do humilhado, do bobo da corte, tanto profissionalmente quanto na sua vida pessoal.

Muitos vão dizer que é um filme perigoso e realmente é. Contudo, a questão aqui não é se perguntar se a história justifica ou não os atos de uma pessoa. Vai muito além disso. O propósito do filme é tentar nos tirar de conceitos de moralmente certo ou moralmente errado e se colocar no lugar do outro.

Esqueça a sua própria perspectiva e dá uma chance, por mais difícil que seja, a enxergar a mesma história só que sob o ponto de vista do outro. Só assim você vai conseguir compreender este filme. Não precisa concordar e bater palma, apenas abrir a mente e se esforçar pra entender a realidade de um outro indivíduo sem julgamentos.

Querendo ou não, esse filme é um exercício de empatia do início ao fim. Pode se transformar num exercício de empatia assustador ao dar voz a um vilão? Sem dúvida pode. Mas independente disso, não deixa de ser um exercício de empatia com as motivações e dores do outro.
Até porque, quem disse que só heróis podem provocar empatia?

Arthur Fleck era um homem totalmente desprezado pela sociedade. Trabalhava de palhaço durante o dia, sonhava em ser comediante de stand up à noite e era abusado noite e dia nas horas vagas. Pra completar ainda tinha um distúrbio psiquiátrico que o obrigava a rir escancaradamente nas piores situações, contra sua própria vontade, fazendo as pessoas ao redor pensarem que ele estava debochando.

O filme, dirigido por Todd Phillips, é uma crítica social do início ao fim. Mostra como o contexto somado a personalidade, problemas químicos e criação do indivíduo pode ser um prato cheio para transformar alguém em um monstro. Claro que muita gente passa pela mesma situação e nem por isso se torna um assassino. Ok. Porém, muitos outros se matam e poucos conseguem ser fortes o suficiente pra superar e se reerguer. Portanto, a toxicidade da sociedade é algo que realmente precisamos prestar mais atenção, de uma vez por todas.

Todos, sem exceção, somos reflexo do meio onde vivemos. Como já dizia o Determinismo, somos produto do meio, da raça e do momento histórico. Logo, para entender um ser humano em toda sua complexidade é necessário analisar onde ele cresceu, como, com quem, o que estava acontecendo no mundo durante toda sua existência, quais lugares passou, se continuou no mesmo local onde nasceu a vida inteira ou se houve mudança. Caso tenha tido mudança, observar quais foram e como isso afetou aquele indivíduo.

Enfim, só compreendendo o contexto no qual a pessoa está inserida podemos começar a entendê-la um pouco e mesmo assim, não é tudo. Mas é um começo, pois sem olhar pro contexto não saberemos absolutamente nada.

E por isso que é tão importante que façam mais filmes nesse estilo, sobre a origem de um personagem (ainda mais em se tratando de vilões que são tidos como monstros) e seu passado/história de vida. Ninguém age de determinado jeito sem motivo e para conhecer as motivações por detrás das atitudes de um ser é preciso retornar ao seu passado.

Aquela visão maniqueísta de totalmente bom ou totalmente mal, além de fantasiosa e idealista, também não funciona mais. É muito mais realista entender que todos somos Coringas e Batmen em potencial. Vai aflorar o lado que for mais incentivado, dependendo de vários fatores, começando pelo contexto.

E talvez por isso que filmes sobre vilões assustem tanto. Porque o espelho sempre dói. Olhar pro lado e se ver refletido naquilo que julga abominável destrói nossa eterna tentativa de parecermos sempre heróis perante nossos próprios olhos. Na maioria das vezes, odiamos aquilo que também somos, mas queremos esconder.

O protagonista fazia terapia e tomava seus remédios oferecidos gratuitamente pelo governo até que esses benefícios (como sempre) foram cortados por “falta de verba”. “Ninguém se importa com pessoas como você e nem como eu”, já dizia sua psicóloga. E é bem por aí mesmo. Nada novo sob o sol.

No longa fica claro que Arthur sempre era provocado. Nunca era ele que começava a confusão, ele reagia às provocações alheias. Podia reagir de uma forma mais branda? Tudo bem! Certamente podia, mas levando em consideração toda a história de vida do protagonista desde sua infância até a vida adulta, passando por constantes humilhações, diariamente, sem ser poupado uma única vez, convenhamos que é bem difícil lidar com as situações de forma mais amena. Tudo que ele conhecia desde sempre era a violência e a única pessoa que parecia amá-lo também o decepciona; sua mãe adotiva Penny Fleck (a maravilhosa Frances Conroy de American Horror Story e O Nevoeiro).

Quando criança, Arthur sofreu diversos abusos de seu padrasto, sendo exposto à radiação (o que pode ter desencadeado nos problemas químicos que desenvolveu). Tudo isso “permitido” por sua “mãe”, uma mulher que também tinha distúrbios psiquiátricos. Ela realmente o amava, só que por não ser mentalmente saudável acabou sendo negligente. Além de que é muito complicado conseguir criar um filho nas condições dela. Pode não ser justificável, mas aqui não cabe julgamentos. Esse não é um filme para julgar, mas sim, para refletir sem julgamento de valor.

A forma de lidar com a crueldade de sua realidade era fugindo dela através da arte. Por meio do humor, da dança e até da atuação, ele podia ser o que quisesse, era o único momento onde conseguia ser respeitado (mesmo que de maneira ilusória), reconhecido, amado e acima de tudo, livre.

Obviamente, no caso dele, também tinha um grau de narcisismo por detrás disso, até mesmo por conta dos problemas psiquiátricos. E talvez por isso, que o personagem precisou apresentar um quadro químico. Porque talvez assim seja mais fácil das pessoas “entenderem” seu lado, afinal, ele tem uma doença o movendo também. E ninguém escolhe ser doente. É algo que vai além da própria vontade.

Tem como controlar? Tem, mas se a pessoa não tem condição financeira para se tratar e o governo simplesmente corta e desvia verba, fica muito complicado se ajudar, não é? E também, por outro lado, pode ser para que as pessoas pensem que ele passa a agir de forma violenta porque é um louco cheio de distúrbio mesmo e anulem toda a questão do contexto no qual ele está inserido. Tem esses dois modos de enxergar.

Entretanto, apesar do narcisismo de sonhar tanto com os aplausos do público, quem naquele estado degradante não iria almejar alcançar a glória um dia? Ainda mais alguém com aquela personalidade artística que Arthur Fleck tinha de uma forma tão específica, tão única, tão absurdamente singular. Afinal, não dizem que no fundo todo artista é um egocêntrico exibicionista? Fica a reflexão…

Coringa é um retrato da depressão e das máscaras sociais que somos obrigados a vestir para encobri-la em público, da pobreza, da decadência e violência diária e suas terríveis consequências, da negligência da sociedade com as mazelas que ela mesmo gera, da diferença de classe exorbitante, da sujeira que infesta as ruas, corações e mentes de Gotham e de seus moradores, da solidão e do cansaço de um povo que não aguenta mais ser feito de palhaço pelas autoridades.

No final das contas, somos realmente todos palhaços, não é mesmo?

NOTA: 10

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