Na noite deste domingo (13), ocorreu a 95ª cerimônia de entrega do Oscar, que é possivelmente a mais famosa premiação do cinema mundial. Saíram com mais prêmios o filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, que venceu como melhor filme e obteve outras 6 estatuetas, e Nada de novo no front, que terminou a noite com 5 prêmios. Depois da conturbada cerimônia do ano passado, marcada pela agressão de Will Smith a Chris Rock e pelo recente início da guerra na Ucrânia, este ano o Oscar visivelmente procurou um clima mais ameno.
Por um lado, esta cerimônia marcou a consolidação do projeto de ampliação da diversidade, o que se expressou em números significativos ou mesmo em recordes, como a maior indicação de atores de origem asiática ou a primeira indicação ao Oscar de um número significativo de profissionais, inclusive de muitos que atuam na indústria de cinema. Como consequência da política de ampliação da diversidade, ainda que de forma tímida, desfilaram rasos discursos sobre a questão da mulher, sobre racismo e sobre imigração. O ponto alto dessa ampliação da diversidade foi a entrega de alguns prêmios, como o segundo Oscar de figurino para Ruth Carter e o de melhor atriz para Michelle Yeoh, nascida na Malásia, que começou a carreira em Hong Kong e conta com uma longeva trajetória em Hollywood.
O tom político não foi além desse identitarismo raso, com exceção da premiação do melhor documentário para Navalny. O filme é centrado na figura do advogado Alexei Navalny, líder do partido de direita Rússia Pelo Futuro, de oposição a Vladimir Putin. Navalny foi preso em 2021. A premiação ao documentário foi o momento de falar sobre a guerra na Ucrânia e de fazer críticas a Putin, tendo inclusive uma breve fala da esposa de Navalny. Expressava-se, assim, ainda que criticando corretamente o regime autoritário de Putin, a posição imperialista de apoio ao governo da Ucrânia.
Um tema praticamente ausente na cerimônia foi justamente o governo Biden. Se em outras cerimônias se viu discursos acalorados contra a gestão Trump e no ano passado se costurou uma coesão narrativa em torno da defesa da Ucrânia, neste ano havia pouco a se fazer na defesa do governo Democrata. Pelo contrário, há um crescente protagonismo por parte dos trabalhadores em luta. Os Estados Unidos se veem mobilizados nos últimos anos em torno dessas greves e mobilizações, bem como do aumento da sindicalização. Na cerimônia do Oscar, diante de um cenário em que os trabalhadores reais entram em cena, fica difícil para as grandes estrelas de Hollywood denunciarem sua desigualdade salarial. Embora o salário dessas atrizes de fato seja inferior ao de seus colegas homens, os valores que elas recebem é muito superior ao que se paga para qualquer outro trabalhador, homem ou mulher, explorado pelas grandes produtoras de cinema e televisão. Para piorar, depois da pandemia, seja no cinema ou nas produções para televisão e streaming, tem crescido a denúncia da piora nas condições dos trabalhadores.
Curiosamente, essa edição do Oscar teve um conjunto de filmes que, mesmo a partir de perspectivas limitadas, levantaram temas políticos relevantes, e tiveram pouca atenção da imprensa ou mesmo das premiações. O mais óbvio certamente passa por Argentina, 1985, que, independente de dar uma menor relevância à atuação dos trabalhadores do que a dos advogados, mostra o processo de punição aos criminosos dos governos da ditadura. No caso de Entre Mulheres, apesar da premiação de roteiro adaptado para Sarah Polley, houve pouca atenção a este filme que trata da violência contra as mulheres e sua relação com a religião. O indiano RRR, vencedor em canção original, e que traz uma reflexão sobre a opressão colonial da Índia no período anterior à independência, foi mostrado na cerimônia mais como uma expressão exótica musical e de dança do que como uma obra política. Mesmo Tár, que com todas as mediações possíveis traz reflexões sobre a degeneração das relações de trabalho no capitalismo, nos comentários em geral não passava de um mero filme estrelado por Cate Blanchett.
Essa cerimônia do Oscar é expressão de uma sociedade que ainda vem conseguindo colocar as tensões de classe debaixo do tapete, pelo menos durante uma transmissão televisiva de algumas horas, mas que já se mostra incapaz de defender o projeto vitorioso nas últimas eleições presidenciais. Mesmo a guerra é justificada muito mais pela tirania de Putin do que por qualquer eventual simpatia pelo indefensável governo da Ucrânia. Com isso, exaltam-se as identidades, que, por um lado, de fato permite uma maior diversidade no palco do Oscar, mas, por outro, esconde as contradições que vão se exacerbando na sociedade norte-americana.