Na primeira quinzena de julho a colunista Maureen Lee Lenker da EW escreveu um artigo sobre a forma como a Marvel vem tratando suas heroínas. Com argumentos bastante pertinentes (e alguns spoilers, melhor avisar), ela relata seu cansaço de ver as heroínas maravilhosas e bad ass terem o mesmo fim: morte por sacrifício. É praticamente impossível não concordar com a perspectiva de Lenker, mas acredito que o problema possa ir além disso.
Sim, hoje as heroínas têm um destaque maior do que há, sei lá, quinze anos. E sim, elas já fazem concorrência com as princesas pela preferência das meninas. O que é muito bom. Pois mesmo que as princesas modernas não sejam mais o arquétipo da donzela indefesa, acredito que heroínas podem ser inspirações ainda maiores de empoderamento feminino. Por que enquanto o cargo de princesa está atrelado à descendência ou casamento, uma heroína pode vir de qualquer lugar.
Mas vamos analisar dois exemplos (cuidado, aqui também tem spoilers): Em Frozen 2 Elsa (Idina Menzel), depois de quase morrer, consegue salvar Arendelle e a floresta, ressuscitar Olaf e ainda abrir mão da coroa para viver linda e maravilhosa como um espírito livre. Enquanto em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, Wanda (Elizabeth Olsen) se deixa tomar pela dor do luto, não se importa em destruir quem se impõe entre ela e seu objetivo de raptar (sim, raptar) outra versão de seus filhos, e só quando vê nos olhos deles o terror causado por ela é que percebe o estrago que fez e decide se sacrificar para concertar a situação. Em suma: Princesas vivem, heroínas morrem. Na cabeça de uma criança, quem parece um exemplo melhor?
Tudo bem, os filmes da Marvel não são exatamente para crianças. Embora muita gente ainda ache que sim, e quem gosta ainda tenha que lidar com o julgamento de metade do mundo. Mas não é por ser uma pessoa adulta e adorar a forma como a Marvel insere dramas humanos em suas histórias que vou aceitar heroínas morrendo uma após a outra. Já não basta que na vida real milhões e milhões de mulheres tenham se sacrificado lutando por um mundo melhor para futuras gerações? As heroínas da ficção não podem simplesmente continuar salvando o dia como os heróis?
Na trajetória das histórias de super-heróis as heroínas já evoluíram bastante. Passaram a ter personalidades mais complexas, deixaram o cargo de ajudante para serem protagonistas e aos poucos vem sendo menos sexualizadas. (Por mais que uma mulher empoderada deva usar o que quiser, é um tanto contraproducente salvar o mundo com o corpo desprotegido.) Em parte porque cada vez mais mulheres vem participando da criação dessas histórias. Mas elas ainda são minoria, e talvez os homens não entendam a mensagem que passam ao fazerem com que suas heroínas sejam tão descartáveis. E como teremos um mundo com mais equidade se nem as histórias têm o mesmo peso para meninas, meninos, homens e mulheres?
Isso só reforça o círculo vicioso em que vivemos. Meninas e meninos seguem acreditando que existem “coisas adequadas para cada gênero” e a indústria, em diversos seguimentos, segue essa demanda. Lembro que quando Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko criaram A Lenda de Korra (spin off de Avatar: A Lenda de Aang) precisaram enfrentar a resistência dos executivos da Nickelodeon a respeito da protagonista ser uma garota. Em entrevista ao National Public Radio, em 2012, Konietzko disse o seguinte:
“Alguns executivos da Nickelodeon estavam preocupados em apoiar um programa de ação animado com uma protagonista feminina. A sabedoria convencional da TV diz que as meninas assistem a programas sobre meninos, mas os meninos não assistem a programas sobre meninas.”
Acontece que em uma exibição teste os meninos disseram não se importar que Korra (Janet Varney) era uma garota, e a acharam o máximo. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito da avaliação dos adultos. E até hoje acredita-se que A Lenda de Korra estava fadada ao fracasso desde o início, simplesmente por ser protagonizada por uma garota.
Essa não deixa de ser a mesma linha de pensamento que levou J. R. R. Tolkien a escrever O Hobbit apenas com personagens masculinos. Afinal, seus filhos eram todos meninos (os primeiros rascunhos são de 1928, um ano antes de Priscilla Anne nascer) e era de conhecimento geral que meninos não gostavam de histórias com meninas. Não me levem a mal, amo Tolkien e principalmente tudo que diz respeito a Terra Média. Mas já se passaram cem anos e continuamos incutindo essas perspectivas sexistas na cabeça das crianças. Desse jeito fica difícil esperar um futuro realmente igualitário.
Porém, não consigo deixar de pensar na nossa brasileiríssima Turma da Mônica como um ótimo exemplo. Temos um grupo de personagens heterogêneos, cuja líder é uma menina forte (em diversos sentidos) e que todos que os conhecem amam. Nunca vi alguém, adulto ou criança, dizer que as histórias da turminha eram apenas para meninas por apenas se chamar Turma da Mônica. Por que a única coisa que Maurício de Sousa sempre quis foi criar histórias divertidas.
É claro que sozinhas as histórias não acabarão com o machismo no mundo. Mas se talvez, só talvez, conseguirmos usá-las para mostrar o impacto negativo de pensamentos sobre público-alvo referente a gênero, então talvez algo possa ser feito. Mas a indústria é feita por pessoas, e a indústria só vai mudar se as pessoas realmente mudarem.