Lucifer: Como a figura de Deus na série representa a visão moderna de pai?

Porque o mundo mudou, e com ele os pais.

É notório que Lucifer usa da mitologia judaico-cristã para fazer metáforas com o mundo em que vivemos. Quantas vezes o personagem-título, vívido por Tom Ellis, mencionou que os seres humanos têm mania de culpá-lo por suas próprias ações? A verdade por trás disso é que muitos consideram mais reconfortante acreditar que um ser sobrenatural manipula pessoas para cometerem atos vis do que aceitar que alguém é capaz de fazê-los por conta própria. Outra analogia sempre muito presente foi a de Deus como um pai de fato, que ficou ainda mais forte nessa 5ª temporada.

Alerta de spoiler: Só continue lendo se já concluiu a 5ª temporada.

Mesmo que Deus só tenha aparecido realmente nessa temporada sendo interpretado pelo ator Dennis Haysbert, tem sido um personagem presente em toda a série. Não só pela suposta aparição no episódio God Johnson da 2ª temporada, onde o personagem de Timothy Omundson pensava ser Deus por usar uma relíquia celestial como fivela de cinto. Nem por causa da narração (feita por Neil Gaiman, que criou o personagem Lucifer na HQ de Sandman) do episódio Once Upon a Time da 3ª temporada. Mas porque tanto Lucifer quanto Amenadiel (D.B. Woodside) sempre mencionaram o quanto o Pai, de uma forma ou de outra, influenciou em quem se tornaram.

Lucifer e Deus numa sessão de terapia familiar

Nesta questão estaria uma boa diferença entre a visão de Deus como pai feita pela Bíblia e pela série. Enquanto nos textos sagrados Ele é o Pai da humanidade que pode ser severo ou misericordioso, dependendo se estamos falando do Velho ou do Novo Testamento, na série Deus é Pai no sentido mais literal. Como criador dos anjos (o que está de acordo com a Bíblia), Ele é o Pai dos celestiais. E convenhamos que Lucifer e Amenadiel sempre mostraram uma visão bem contemporânea do Pai. Não a de um pai que é o provedor do lar, que deve ser respeitado e temido. Mas a de um que apesar de amado pode deixar mágoas, e que por vezes pode ser ausente.

Porém, até agora tínhamos apenas uma visão unilateral dessa relação entre Pai e Filhos. Mesmo que Lucifer e Amenadiel costumassem mostrar opiniões diferentes sobre o assunto. E com Deus como um personagem ativo na série pudemos não só ver o outro lado como também um pouco de interação. Foi interessante, e até divertido, ver Deus apenas como um pai querendo reestabelecer os laços com seus filhos. Como não rir de Lucifer mostrando seu local de trabalho a Deus enquanto se sentia diminuído? (“Por que você não tem uma mesa?”) E Lucifer percebeu que ainda amava seu Pai ao vê-lo vulnerável, e se vendo capaz de retornar ao seu estado mais diabólico para protegê-lo.

Com Amenadiel as coisas foram um pouco mais simples, mas ainda emotivas. Depois do choque de saber que Charlie não é um celestial, o que o torna frágil e mortal, foi seu Pai quem o ajudou a ver que isso não era nenhuma lástima. O choque inicial de Amenadiel pode até ser assimilado com o luto pelo qual alguns pais passam ao descobrirem que o filho nasceu com alguma doença ou síndrome. Mas uma vez passado o choque inicial, percebem que basta estarem presentes e amarem seus filhos.

Amenadiel, Deus e o pequeno Charlie

Outro momento importante dessa relação abordada na temporada foi quando Deus revelou estar perdendo o controle de seus poderes. No fim das contas o acontecimento se revelou mais uma manipulação de Michael, mas serviu como metáfora para uma situação bem real. Quando filhos descobrem que o pai, outrora tão forte e dono de si, se encontra doente e dependente. E além disso, quando os filhos precisam decidir quem vai assumir os negócios da família. Sempre tem aquele filho desnaturado que aparece na hora de receber a herança (Michael).

O que podemos perceber quando colocamos lado a lado a visão bíblica (que de certa forma representa a visão de muitas religiões) com a visão da série é que o papel do pai mudou com o tempo. O que não é ruim. Se antigamente o pai era apenas aquele que gerava e quando muito provê, que exige ordem sem muitas demonstrações de afeto, hoje a situação é outra. Embora muitas crianças ainda cresçam sem conhecer o pai e grande parte da sociedade ainda mantenha uma visão machista do papel do pai, muita coisa já mudou. Apenas sustentar não torna um pai presente. E quando se fala da criação e educação de uma criança, um bom pai é aquele que exerce as mesmas funções da mãe. Não que ajuda, mas que participa igualmente. Muita coisa ainda precisa mudar para atingirmos esse ponto, mas o caminho está feito.

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