Você pode gostar ou não de Democracia em Vertigem, mas não tem o direito de se enganar (ou mentir) ao seu respeito. O filme da brasileira Petra Costa, que pode ser a primeira mulher da América Latina a ganhar um Oscar, é um documentário. E não é uma grande reportagem.
Documentários cinematográficos e reportagens bebem de fontes parecidas e, frequentemente, se confundem entre si. Nos anos 80 e 90, o Globo Repórter se beneficiou do talento de Eduardo Coutinho como diretor de diversos programas. O documentarista de renome internacional é um dos maiores nomes do cinema brasileiro e, certamente, aprovaria Democracia em Vertigem. Foi lembrado pela Academia em 2014, ano em que morreu.
E por que é tão importante delimitar diferenças entre o documentário e a reportagem, o jornalismo e o cinema se são formas de comunicação tão próximas?
O jornalismo é uma comunicação objetiva, focada em fatos e em informar o que está acontecendo ao espectador. Já o documentário é uma comunicação subjetiva, focada no ponto de vista de quem o dirige e qual a sensação que aquilo passa.
Há mais de uma década, Super Size Me arrebatou o mundo e causou danos severos à indústria do fast food com seu diretor Morgan Spurlock passando semanas se alimentando apenas de MC Donald’s. No processo, tomou duras de médicos, regurgitou comida e finalizou seu filme com a própria namorada reclamando de como a alimentação havia afetado sua vida sexual. A produção era recheada de dados e informações, como uma boa reportagem, mas isso seria enfadonho não fosse o reality show de acompanhar as mudanças fisiológicas no corpo do diretor. O seu ponto de vista, sua via crúcis para comprovar empiricamente os males do fast food.
Ainda que a linha seja tênue, os Estados Unidos sempre a delimitaram. O Pulitzer é a referência de premiações em jornalismo, mas o Oscar de Melhor Documentário premia esses filmes. Podem ser semelhantes, mas não são iguais.
A produção de Petra Costa é vítima de um mal comum no Brasil: o achismo. Há um excesso de ruído em críticas sobre o que são justamente as melhores qualidades de Democracia em Vertigem. Quem o ataca sem base ou argumentos, frequentemente, o chama de “fantasia e ficção” ignorando que muitos documentaristas consideram seus filmes mais subjetivos do que produções com atores. Estão cobrando objetividade, do que pretende ser subjetivo. Cobram que o filme seja impessoal, quando o documentário é bom porque justamente é… Pessoal!
Durante o dia, chamou a atenção a crítica de Pedro Bial, que criticou a narrativa da produção brasileira e o descreveu como uma “ficção insuportável”. Ícone do jornalismo, o entrevistei em 2004, em um lançamento de um livro sobre Cacá Diegues. Ao responder sobre o diretor brasileiro explicou que “Cacá fez cinema quando era impossível fazer cinema”. Era uma descrição precisa de um dos melhores textos do telejornalismo porque era objetivo, factual.
Ao se ater a relação de Petra com a mãe e o incômodo da diretora com o enfraquecimento da democracia, ele parece esquecer de tantos outros documentaristas que fazem o mesmo. Carece de fatos, falta apuração.
Em Utopia e Barbárie (2009), Silvio Tendler revisita suas próprias aspirações da juventude e frustrações com o mundo. Narrado em primeira pessoa e de forma didática (Tendler é professor de filme-documentário na PUC-Rio) ele transmite seus sentimentos com as mudanças do mundo. O que sua geração falhou? O que acertou? É intimista, quase confessional. Bial e outras pessoas que reclamam da exposição de Petra, talvez respeitassem mais a produção do diretor de O Mundo Mágico dos Trapalhões. Mas vale sempre lembrar: o ato de coragem de revelar como vê o mundo não depende de gênero, raça ou credo. Apenas de empatia, artigo em falta a muitos.