Carmilla e o caminho da punição

No final da década de 1960 houve um crescimento de produções que colocaram em cena personagens mulheres vampiras, algumas das quais lésbicas, em especial as produções da chamada Trilogia Karnstein, que inclui os filmes The Vampire Lovers (“Carmilla”, 1970), dirigido por Roy Ward Baker, Lust For a Vampire (“Luxúria de vampiros”, 1971), de Jimmy Sangster, e Twins of Evil (“As filhas de Drácula”, 1971), de John Hough. Para além dessa trilogia, também podem ser verificados outros filmes que destacam mulheres vampiras, como Vampyros Lesbos (1970), do diretor espanhol Jess Franco.

Constrói-se nesses filmes a representação de mulheres que são, ao mesmo tempo, independentes e cruéis, descrevendo-as como destruidoras da família e de tradições, ao seduzir jovens inocentes. Essas mulheres vampiras são apresentadas como criaturas perigosas que ameaçam a sociedade patriarcal burguesa. O vampiro é visto como uma criatura que vive do sangue alheio, sobrevivendo em função de outras vidas, como um parasita. O vampiro representa no imaginário burguês a classe dos nobres, associando-a à decadência moral. Portanto, assim como certos grupos sociais, o vampiro criado pela ficção é um ser estranho ao convício em sociedade moderna, e, por isso, deve ser não apenas marginalizado como combatido

Os filmes que colocam em cena perigosas vampiras mulheres em grande medida foram inspirados em uma personagem clássica da literatura de terror. O romance Carmilla, de Sheridan Le Fanu, publicado em 1872, é narrado a partir da perspectiva de Laura, uma jovem que vive isolada com o pai e os empregados da casa. Certo dia, surge uma hóspede inesperada e belíssima, que desperta sentimentos amorosos em Laura, ao mesmo tempo que lhe causa certo terror, ao trazer de volta antigos pesadelos da infância.

Os filmes baseados nessa personagem, especialmente no final da década de 1960, expressa uma forma de reação à consolidação do feminismo enquanto um movimento social. O feminismo, que questiona tanto a opressão feminina no mundo do trabalho e no âmbito da política na sociedade patriarcal, problematizava também a dominação da mulher no cotidiano e a opressão sexual na sociedade. Essa crítica apontava para um novo comportamento sexual das mulheres, sobre o qual durante muito tempo preponderou uma imagem permeada por uma moral que atribuía um papel ideal de castidade.

Os anos 1970 consolidaram mudanças profundas no comportamento sexual e na forma de encarar a sexualidade. Essas mudanças, que paulatinamente vinham se enraizando na sociedade, não se deram sem que houve resistência por parte dos setores conservadores. Essa resistência se expressou no aumento de políticos da Nova Direita condenando a independência das mulheres, manifestantes contra o aborto jogando bombas incendiárias em clínicas e pregadores fundamentalistas condenando as feministas como “prostitutas” ou “bruxas”. O conservadorismo vivenciado pela sociedade acabou também sendo representando pela cultura popular, na medida em que no cinema e na televisão mulheres solteiras e independentes eram cada vez mais representadas de forma negativa, em uma tentativa de demonstrar que a revolução sexual não teria dado certo e que as mulheres tidas como livres seriam desesperadas e infelizes.

Esses embates no âmbito da cultura e da política tiveram seu impacto também nas telas de cinema. Carmilla ou as personagens nela inspiradas, representadas no cinema como uma ameaça para a sociedade, podem ser entendidas como representações distorcidas das feministas que questionavam os padrões da sociedade patriarcal. A caçada e o assassinato de Carmilla mostram como a sociedade conservadora encarava sua postura de mulher livre. Contudo, essa representação de mulheres perigosas não é exclusividade dos filmes de vampiros, mas da construção da imagem da femme fatale.

Nos filmes que se baseiam na figura de Carmilla o enredo é bastante semelhante, ou seja, ainda que com pequenas variações, uma mulher misteriosa se insere em um ambiente familiar e o destrói. Essa mulher é sempre belíssima e sedutora, sendo nos filmes exploradas muitas cenas com as atrizes nuas. Esses filmes apresentam um significativo elemento conservador, na medida em que as representações de Carmilla ou de suas variantes são apresentadas como a expressão de uma sexualidade associada à promiscuidade. Carmilla simboliza um mal que ameaça as mulheres, que pode afastá-las do papel social a que o ambiente patriarcal as insere, colocando-as em um caminho que não seja o da submissão. Essas mulheres não encontram outro destino que não seja a solidão e o sofrimento.

Outro exemplo do conservadorismo presente nos filmes que adaptam Carmilla se expressa no abuso de imagens que expõem o corpo das atrizes. Essa exibição do corpo visa criar um certo erotismo, tornando essas mulheres um “produto” a ser consumido pelo olhar masculino. Os filmes, quando exibem mulheres independentes, não estão fazendo uma apologia à sua emancipação, mas construindo a narrativa de que não há espaço na sociedade para o seu comportamento. Essas mulheres são objeto do mundo masculino, de contemplação e de dominação. Não por acaso são as figuras masculinas que sempre salvam as mulheres de seu destino trágico, ao mesmo tempo que combatem Carmilla.

Esses filmes constroem uma metáfora que compara o vampirismo ao despertar da sexualidade feminina, dando a isso uma conotação quase sobrenatural e, também, negativa. Caberia aos homens, que se enxergam como seus responsáveis por serem racionais e sensatos, controlar esses institutos aflorados e resolver os problemas em que essas mulheres acabam por se colocar. Nos filmes sobre Carmilla, como no livro que lhe deu origem, a morte de Carmilla seria uma espécie de mensagem de que a sexualidade independente ou o controle das mulheres sobre seus corpos não é algo socialmente aceitável. Essa sexualidade feminina aflorada deve ser mantida no ambiente privado e num contexto familiar e controlado por uma figura masculina.

Carmilla, portanto, encontra um destino não muito diferente ao de Lilith, que, por querer se libertar da dominação masculina, também foi excluída do convívio social, vendo ser construída uma imagem negativa sobre sua história. Os filmes sobre Carmilla, como em muito do conservadorismo do horror contemporâneo, mostram uma maior liberdade sexual das mulheres como não apenas algo negativo, mas digno de punição, com violência e mesmo a morte. Os filmes acabam sendo exemplos claro do caminho de punição que um comportamento feminino independente pode ser vítima.

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