Buffy e a cultura contemporânea

Passados mais de vinte anos desde sua estreia, em março de 1997, a série Buffy tornou-se um importante marco na representação das heroínas. Ao longo de sete temporadas, Buffy Summers liderou um grupo de jovens que lutavam contra vampiros, bruxas, lobisomens, demônios e até mesmo monstros criados em laboratório. O desenrolar da série levaria Buffy de um embate solitário contra forças do Mal até a organização coletiva de garotas que tinham como objetivo lutar contra a opressão e a misoginia.

Na série narra-se a história de Buffy, uma estudante de dezesseis anos, que poucos anos antes havia descoberto ser parte de uma longa linhagem de “caça-vampiros”. No começo da série, se muda para uma cidade chamada Sunnydale, localizada sobre a Boca do Inferno, uma espécie de convergência de diferentes forças sobrenaturais. Essa tarefa de lutar contra forças do Mal era parte de uma profecia, na qual uma caçadora surgiria a cada geração e deveria proteger o mundo. Se essa caçadora morresse, outra garota, entre várias em potencial, automaticamente seria acionada para assumir o seu lugar.

Buffy

A caça-vampiros não é uma donzela em perigo, mas uma garota que enfrenta seus dilemas e medos e se coloca frontalmente contra diferentes formas de opressão. Essa construção de uma personagem que não apenas mostra independência e coragem, mas que também incentiva e organiza outras garotas a lutarem por sua liberdade, levou a série a ser associada ao pensamento feminista.

O protagonismo de personagens femininas é um elemento marcante da série. Entre as mulheres que fazem parte do grupo, o destaque é a bruxa Wilow, melhor amiga de Buffy e que, ao longo das temporadas, desenvolve seus poderes. No começo da série é uma garota tímida e inteligente desprezada pelos colegas por ser considerada estranha. Contudo, depois de ser apresentada ao até então desconhecido mundo de monstros e de outras perigosas criaturas, a feiticeira cresce em sua autonomia e coragem, se tornando não apenas uma pessoa de extrema confiança de Buffy, mas também uma poderosa guerreira.

O crescimento pessoal de Wilow ocorre de forma paralela ao desenvolvimento de seus poderes como bruxa, bem como de outros aspectos, como a iniciação de sua vida sexual ou a adaptação à vida na universidade. No desabrochar de Wilow, um dos aspectos mais relevantes é sua homossexualidade, sendo uma personagem bastante lembrada pelo namoro com uma outra bruxa, Tara. O casal lésbico, um dos primeiros a ser apresentado em uma série voltada ao público juvenil, acabou ganhando muitos admiradores, tendo sido marcante e inclusive bastante criticado o fim da relação, com o assassinato de Tara. Essa morte traumática se tornou um dos acontecimentos mais importantes da sexta temporada, por conta do sofrimento causado a Wilow.

Outra personagem feminina que também acabou se destacando ao longo da série foi Joyce, mãe de Buffy, divorciada, que cria sozinha uma adolescente que inicialmente julga ser uma garota problemática. Buffy não apenas respeita a mãe, como a admira por sua independência e coragem, sendo sua morte um dos momentos mais marcantes e tristes na vida da protagonista. Embora vivendo em um lugar tão perigoso como a Boca do Inferno, Joyce não morreu pelas mãos das criaturas que habitam o lugar, mas de uma doença, sendo explorada o sentimento de impotência de Buffy. O episódio The Body, exibido na quinta temporada, além de ser considerado um dos melhores da série, conta com uma das mais marcantes atuações de Sarah Michelle Gellar.

Outra personagem bastante destacada, embora tenha deixado a série a partir da quarta temporada, foi Cordélia, a garota mais popular e bonita da escola, jovem arrogante e esnobe. Ela acaba por se envolver com o grupo de “esquisitos” liderados por Buffy. Na paulatina construção da personagem descobre-se que ela não era assim tão diferente do grupo de Buffy, tendo problemas e sofrimentos concretos que buscava esconder por meio da personagem que criou. Cordélia acabou deixando a série para assumir papel de destaque no spin-off de Buffy, a série Angel.

Anya é outra mulher da série que se destaca: um demônio com séculos de vida, cuja tarefa era realizar os desejos de vingança de mulheres contra homens que lhes causaram sofrimento, e que acabou se envolvendo com o grupo de Buffy depois que perdeu seus poderes. Outra personagem importante é Faith, embora tenha menos aparições que as demais, uma segunda caçadora acionada depois da morte (e ressurreição) da protagonista, na maior parte do tempo uma antagonista de Buffy. O que a protagonista tem de bondade e altruísmo, Faith acabou acumulando em raiva e inveja, buscando inclusive assumir o posto de Buffy.

Mesmo alguns dos vilões são mulheres admiráveis. No episódio piloto rapidamente apresenta-se a vampira Darla que, apesar de sua submissão ao Mestre, mostra muito mais personalidade do que os seguidores homens do grande vilão da primeira temporada. Em episódios posteriores o espectador é apresentado à atormentada Drusila, que usa de artifícios e sedução para manipular os vampiros homens, em especial Angel e Spike. Na quinta temporada destaca-se a cruel e sensual Glory, um demônio com séculos de vida, preso no corpo de uma bela mulher, que mantém seus seguidores numa relação de completa submissão. Uma das questões interessantes envolvendo Glory é o fato de viver uma espécie de crise de identidade com seu “irmão”, com quem compartilha o mesmo corpo, numa clara reflexão sobre identidade de gênero.

Na possível aproximação com as ideias feministas, outro fator possível de ser apontado é a luta de Buffy contra o patriarcado, que se manifesta de diferentes formas. Na primeira temporada, isso acaba sendo bastante óbvio, afinal Buffy enfrenta um vampiro que representa todo tipo de ideias opressoras. Esse vampiro se autodenomina Mestre e visa basicamente sugar o sangue de jovens para se fortalecer e dominar o mundo.

Essa luta contra o patriarcado fica mais evidente na última temporada, quando Buffy enfrenta uma manifestação imaterial do Mal. Essa encarnação do Mal assume uma feição diferente para cada pessoa que a enxerga, mostrando sempre a imagem de pessoas mortas. Essa força poderosíssima tem como principal aliado Caleb, um padre que ao longo de vários episódios exala uma variedade de frases misóginas. Caleb dizia coisas como: “Era uma vez uma mulher. Ela era suja, como toda mulher. Pois a costela de Adão era suja, como o próprio Adão. Pois ele era só humano. Mas esta mulher estava cheia de trevas, de desespero”.

No seu embate contra o patriarcado, Buffy acaba se enfrentando inclusive com seus próprios aliados. Em sua guerra contra o Mal, as caçadoras contam com um mentor, que as treinam e orientam e que fazem parte de uma espécie de organização secreta que durante séculos orientavam e acompanhavam suas lutas. Essa organização, composta em sua maioria por homens, trata as caçadoras como meras armas que lhes devem obediência, com regras arbitrárias e rituais antiquados. Buffy, incomodada pelo conservadorismo dessa organização, se rebela e passa a atuar de forma autônoma.

Não seria equivocado pensar em Buffy como uma série em que mulheres fortes e autônomas, que se colocam no espaço público e procuram viver da forma mais livre possível a sua vida e inclusive sua sexualidade, enfrentam tradições machistas e estruturas de poder que pretendem oprimi-las. Como resposta para isso, desde o primeiro episódio, se coloca como única alternativa a ação conjunta dessas garotas, contando com a ajuda de homens que se dispõem a apoiar sua luta. Essa talvez seja a principal mensagem que a série passou para a geração de jovens que viveu o início dos anos 2000.

Essa mensagem ganha mais densidade na última temporada, quando Buffy e seus aliados buscam unir garotas que são potenciais caçadoras (ou seja, poderiam vir a se tornar caçadoras caso uma falecesse). Essas garotas são treinadas para o combate e temperadas em batalhas que vão sendo travadas, se preparando para a luta final contra o poderoso Primeiro Mal. Portanto, Buffy reúne um exército formado por um conjunto de jovens mulheres que possuem predisposição e algum preparo para combater as manifestações de opressão do patriarcado.

No último episódio da série o poder da caçadora é passado para todas as mulheres que fossem potencialmente caçadoras, espalhadas pelo mundo. Em um primeiro momento, essa seria uma ação com uma finalidade prática e imediata, ou seja, as jovens caçadoras treinadas para o combate nos meses anteriores se tornariam caçadoras para lutar a batalha final. Contudo, em paralelo, ao redor do mundo mulheres que também eram caçadoras em potencial ganhavam aqueles mesmos poderes, superando eventuais limites físico e resistindo à opressão e violência sofridas no cotidiano. Ser “caçadora” seria em certa medida ser “feminista” e, por isso, estar consciente e disposta a enfrentar a opressão do patriarcado.

Claro que, ao mesmo tempo, uma produção como essa tem seus limites, seja pelo fato de ser produto da cultura da mídia, seja pelo fato de expressar ainda muitas ideias da década de 1990. Um aspecto relevante tem relação com o fato de, ao se aproximar do feminismo, se dispor a manter essa rebelião nos marcos da dominação de classe capitalista e não lutar por uma efetiva emancipação da classe trabalhadora. Outro elemento importante é a pouca diversidade de mulheres na série, afinal a maior parte são garotas brancas, magras, de cabelos lisos e de classe média americana. Contudo, qualquer eventual limite da série não deve ser motivo para desqualificá-la, na medida em que esses possíveis problemas não minimizam a força do conteúdo que expressa.

Buffy marcou a cultura contemporânea. Por um lado, a série colocou em cena de forma mais sistemática a criação de protagonistas fortes, sendo uma das primeiras em uma linhagem que viria a ganhar a presença de Veronica Mars, da Bo de Lost Girl, de Jéssica Jones e dos clones de Orphan Black. Possivelmente muitas garotas, inspiradas pela postura de Buffy, passaram a se colocar de forma mais firme na esfera pública e a ter uma postura de enfrentar o patriarcado e o machismo.

Embora não se possa encontrar uma relação direita entre Buffy e a ascensão do movimento feminista nas últimas décadas, certamente muitos dos exemplos de Buffy inspiraram, direta ou indiretamente, as mulheres que vem se colocando em luta contra o patriarcado. Como diria a própria Buffy, no último episódio da série: “a partir de agora todas as garotas do mundo que puderem ser Caçadoras serão Caçadoras. Todas que puderem ter o poder, terão o poder. Que puderem se erguer, irão se erguer. Caçadoras, cada uma de nós. Façam a escolha. Vocês estão prontas para serem fortes?”

 

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