Neste final de ano, um dos filmes mais comentados e polêmicos tem sido a produção centrada em um dos personagens mais importantes da DC Comics, o Coringa. Embora mais conhecido como o principal antagonista do Batman, tendo passado por uma variedade de adaptações no cinema e na televisão, esta talvez tenha sido a primeira vez que se tentou contar como teria surgido o famoso vilão. E o que Coringa entrega não é a mera narrativa mecânica do surgimento da maldade em uma pessoa, mas uma história de sofrimento bem escrita, dirigida de forma excelente e interpretada com maestria por Joaquin Phoenix.
Arthur Fleck é um palhaço sem graça. Faz alguns pequenos trabalhos para garantir o seu sustento e de sua mãe. Sonha em ser famoso pela sua arte, mas não consegue sequer ser respeitado por seus colegas de trabalho. Apresenta distúrbios psicológicos, em especial um que o faz gargalhar de forma descontrolada em situações no mínimo impróprias.
Contudo, o que mais chama a atenção nesse aspecto é o quanto a sociedade parece ser, por assim dizer, mal-humorada. Pelas ruas, além da pobreza extrema da população, há uma violência em descontrole, e, curiosamente, tem como vítima o próprio palhaço de Fleck. É quase como fosse proibido rir num cenário de devastação social, e profissionais que queiram dar um pouco de alento e fantasia devessem ser banido. Parece que muitas pessoas estão mais interessadas em rir de piadas machistas e preconceituosas, como as contadas pelo comediante que antecede Fleck no show de stand-up ou pelo apresentador de televisão que parece ter prazer em humilhar as pessoas.
O fato é que há uma profunda crise na sociedade e o filme escancara isso. Logo nos primeiros minutos o filme se remete a uma greve de lixeiros. Ao longo do filme vai mostrando a situação de degradação social e a reação das pessoas, que vão desde saídas individuais e desesperadas até a busca por saídas coletivas, como os protestos contra a figura de Thomas Wayne e dos “ricos” em geral. Thomas, pai do futuro Batman, é um burguês que se coloca como salvador, se candidatando a prefeito, mas se mostra completamente estéril em suas ações. O filme não fala claramente, mas, caso de fato Wayne quisesse mudar alguma coisa, teria que abrir mão de sua riqueza e da exploração dos trabalhadores, ou seja, “morrer” enquanto classe dominante.
O Estado é resumido na assistência social de Fleck, cuja utilidade acaba sendo somente a autorização para que consiga seus remédios, e que é uma das primeiras coisas a ser cortadas diante do aprofundamento da crise. Isso expressa a falência do reformismo, que não consegue sequer estruturar um projeto político assistencialista que responda às necessidades imediatas de pessoas massacrada pelo cotidiano da exploração e da degradação social. Nesse cenário, ou caminha-se para uma revolução ou alternativas de extrema direita podem florescer.
No embate social e político descrito no filme surge a figura misteriosa que representa o desespero sentido por todos. Fleck é atacado por três jovens “riquinhos” em um trem e os acaba matando. Essa ação gera em certa medida uma comoção popular, em que a televisão fala de um palhaço como assassino e a população vê naquela ação uma saída possível, ou seja, entendem que talvez matar burgueses possa ajudar na melhoria de sua vida. Isso leva a um amplo movimento de rua, com quebradeira e muita pancadaria, em que a polícia e os poderosos perdem o controle da situação.
Fleck não se diz um político, mas suas ações acabam inspirando o sentimento e as mobilizações nas ruas. Em certo momento do filme, quase que por acaso, ele literalmente emerge como líder daqueles protestos, e ali está possivelmente a referência mais profunda e importante do filme ao momento atual. Em uma situação de desespero, as pessoas são arrastadas para atos irracionais e, na ausência de estratégias políticas consistentes, acabam buscando lideranças quaisquer que sejam. O fato de ser um palhaço que diz ao vivo na televisão que não é um político, que diz ter sido tratado como lixo ao longo de sua vida, dialoga bastante com o sentimento das pessoas nas ruas.
O filme é genial ao mostrar a situação social e como isso impacta a consciência das pessoas, na busca por alternativas que se deem por fora do status quo. Contudo, é talvez ainda mais genial ao mostrar como isso se processa na ausência de alternativas políticas consistentes, buscando-se a liderança de sujeitos que são muito mais estéticos e superficiais do que políticos, e que exploram sentimentos irracionais e imediatistas dos trabalhadores em desespero. O Coringa não queria liderar a massa enraivecida nas ruas, mas apenas ser um agente do caos.
O filme não é apenas uma possível história de origens de um vilão icônico, nem o desdobramento de um universo dos quadrinhos, mas uma possível representação do atual momento político, criticando tanto os salvadores da direita como o reformismo que não apresentam alternativas reais de transformação da sociedade. Por isso talvez sejam esses dois opostos do espectro político que tanto estejam fazendo críticas ao filme, afinal veem espelhada na tela sua esterilidade diante da fome e da exploração.
Nota: 9