Mary Shelley filme

Mary Shelley e sua criatura

No último mês de julho foi lançado no Reino Unido o filme Mary Shelley, centrado na juventude da famosa escritora que criou Frankenstein, novela cujo bicentenário de lançamento se comemora neste ano. O filme narra o envolvimento amoroso da protagonista com o poeta Percy Shelley e a inserção da aspirante a escritora, ainda uma adolescente de dezesseis anos, em um universo literário britânico predominantemente masculino.

Um dos elementos destacados no começo do filme é o diferencial na formação intelectual de Mary. Filha do filósofo William Godwin, que também é personagem do filme, e da escritora Mary Wollstonecraft, que morreu logo após o seu nascimento, a protagonista foi criada com influência de ideias liberais mais críticas que aquelas predominantes na época. Em 1792, Mary Wollstonecraft publicou o clássico Reivindicações do direito da mulher, em que criticava a constituição revolucionária francesa, aprovada no ano anterior, por não incluir as mulheres na categoria de cidadãs.

Como consequência de um “sistema de educação falso”, segundo Mary Wollstonecraft:

As mulheres civilizadas do nosso século, com raras exceções, anseiam apenas inspirar amor, quando na verdade deveriam nutrir uma ambição mais nobre e exigir respeito por suas capacidades e virtudes.

O começo do filme parece ser uma história de amor comum entre dois jovens que possuem um forte vínculo intelectual. Contudo, ao longo da narrativa são apresentados uma série de problemas que vão aos poucos desgastando a relação. Um deles se trata do fato de Percy ser casado e possuir um filho com outra mulher. Ainda que isto não impeça o relacionamento com Mary, faz com que a jovem se veja obrigada a romper com a família. O segundo problema passa pelos constantes problemas financeiros do casal, devido em grande medida ao escândalo provocado por este amor.  Um terceiro elemento, bastante dramático, se refere à morte prematura da primeira filha do casal, que provoca uma profunda depressão em Mary.

Paralelo a isso, Shelley procurava viver sempre em festa, bebendo e tentando encarnar o hedonismo que parecia permear os ideais de muitos jovens escritores românticos do começo do século XIX. Entretanto, esse estilo de vida não apena corroía os parcos recursos do casal, como criava uma espiral de dívidas. Shelley, ainda que possuísse relativa fama, não era um nome consolidado como escritor e a jovem Mary apenas fazia seus primeiros rabiscos.

O filme mostra o encontro de Mary e Percy com Byron e Polidori, no qual se sugere que cada um deles escreva sua própria “história de fantasma”, em voga na época por conta do sucesso das obras associadas à escola gótica. Frankenstein nasce desse desafio entre os amigos, em meio ao aprofundamento do desgaste da relação entre Mary e Percy. O suicídio da primeira esposa também é algo que abala bastante Percy. O seu relacionamento com Mary viria a passar por outras turbulências, incluindo o período em que estiveram separados. Mary vive com o sofrimento de se sentir sozinha, tendo de tomar decisões sobre o rumo de sua vida mesmo sendo uma jovem que ainda está aprendendo como o mundo funciona.

No filme sugere-se que a criatura inventada por Mary talvez seja uma representação que a jovem escritora construiu sobre si mesma. Na obra de Mary, essa criatura, um amálgama que reunia pedaços de cadáveres humanos, é vista por todos como algo estranho e até mesmo perigoso, em grande medida por conta de sua aparência externa. Mary também parece se enxergar como um conjunto de fragmentos, afinal é, ao mesmo tempo, uma jovem escritora que despreza o estilo de vida hedonista e quase irracional de seus colegas, mas também é uma jovem mulher que causa estranhamento em muitos contemporâneos por ser uma livre pensadora, como sua mãe.

Dualidade

Em uma cena, Mary é criticada como hipócrita por Percy, pois defende a liberdade de escolha afetiva como uma decisão livre de impedimentos externos para todos. Mas em sua vida privada escolheu se dedicar a apenas uma pessoa. Percy, que parece não entender a livre escolha da própria companheira, em realidade parece estar buscando uma forma de justificar seu envolvimento com Claire, irmã de Mary. Em outro momento, Byron mostra-se descontente com a postura de Mary. Byron então afirma que as mulheres deveriam ter inteligência suficiente apenas para entender o que ele escrevia e não a capacidade de questionar suas afirmações. Mary não se encaixava nesse perfil, como parecia não se encaixar em lugar algum daquele contexto.

Contra o machismo

Possivelmente o ponto mais importante do filme se dá quando Mary procura um editor para publicar seu livro, o grande clássico Frankenstein. No contato com essa realidade, descobre que uma mulher, sem recursos financeiros e ainda por cima tão jovem, não teria chances no universo literário da época. No filme mostra-se uma cena em que um editor chega a sugerir que, em realidade, a obra seria de Percy e não dela, um sentido para o qual ironicamente acaba se encaminhando o desfecho de sua busca, quando outro editor aceita publicar a obra desde que seja com autoria anônima e com uma introdução de Percy. Isso acaba fazendo com que durante algum tempo se atribuísse a Percy a autoria de Frankenstein.

Essa situação é revertida pelo próprio Percy e, também, por Godwin. O romance de Mary se tornaria um clássico, conhecido e reconhecido em todo o mundo, adaptado em várias artes, e sua autora um dos nomes mais importantes da literatura de horror. Entre as escritoras do começo do século XIX, Mary, principalmente devido à enorme importância conquistada por sua obra, seria uma das poucas a ser lembrada, ao lado de Ann Radcliffe e de Emily Brontë. O filme, no ano do bicentenário da publicação de sua mais conhecida obra, mostra-se uma bela homenagem à sua importante figura.

Nota: 8

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